quinta-feira, 2 de junho de 2016

"OCEANO COLIGIDO": NOTAS PARA UM PREFÁCIO


Prefácio à antologia poética
Oceano coligido (1980-2000), de Iacyr Anderson Freitas
(São Paulo: Boitempo Editorial, 2000, p. 7-11).

Fernando Fiorese


1. Para além de título desta antologia, a metáfora Oceano coligido diz da poética de Iacyr Anderson Freitas. Não é outro o empenho do poeta: coligir na simbólica do mar, das águas em movimento, a dinâmica da vida, o embate entre memória e esquecimento. Tanto no sentido próprio (recolher, juntar, reunir; contrair, apertar, estreitar) quanto nas suas múltiplas figurações (adquirir, obter, ganhar; concluir, deduzir; refletir em, passar pela memória, examinar; provocar, causar, sofrer), o étimo latino colligere destina esta obra coletânea aos riscos da ausência. O que afirma Ruy Espinheira Filho no prefácio a Lázaro (1995) – “São vários poemas – que também são, sem contradição, um só poema. Ou, se quiserem, vice-versa” – caracteriza todos os demais livros do autor, de forma que o ato de coligir (mesmo quando realizado por mãos engenheiras) enseja lacunas no diário de bordo desse périplo poético de 20 anos. São “dias voados” que, na sua ausência, convocam o leitor à procura da obra completa, mas também, por circunstâncias fortuitas, à experiência na matéria-livro da perda, da cesura e do silêncio, fundamentos da poesia deste “cronista da memória”, conforme o epíteto que lhe atribuiu Carlos Nejar.

2. Como assinalamos, também a poética iacyriana encontra a sua destinação na semântica vária do verbo coligir. Trata-se de realizar “a consumação do mar nos livros” (Primeiro livro de chuvas, “Que a treva mesma”), recorrendo a um rigor formal – “Aqui tens o rigor, visão e engenho / tão resumidos ao fulgor que finges” (Mirante, 3.) – e a uma linguagem simbólica de tal modo elaborada que “esconde sempre / outro dédalo // aceso em seu cavalo” (Colagem de bordo e outros poemas, “Três horas”). De como soletra as imagens do mar, o poeta alcança uma conciliação inaudita entre o concreto e o visionário, a geometria e a vertigem. A simbólica do oceano comparece aqui em sua complexidade e ambivalência. Seja lugar de desterro ou sítio de aventuras e de florescimento, águas primordiais ou imagem do informe e do tenebroso, um meio de purificação ou a própria potência destruidora – símbolo da “hostilidade de Deus”, como no Apocalipse de São João –, “outro é o mar” para aquele que se abisma na indigência do tempo e na crise da linguagem. Tal diz o poeta enquanto Sísifo: “acaso orfeu anfion? / não: seu canto é morte / cacto / desolação” (Sísifo no espelho, “As mãos gastam-se na cal”), pois o gosto apurado pelo/no verbo sabe da linguagem sitiada pelas potências da loquacidade midiática e da lógica cartesiana, sabe que a “palavra carece de pátria / lugar de raiz e eleição” (Exercício estrangeiro, “Pequeno diário da palavra”), sabe que apenas “no exercício e na entrega / o mar floresce” (O aprendizado da figura, “No jardim/IV”). E assim, no poema que empresta título a esta recolha, sintetiza o destino do poeta num tempo de indigência:

inverte-se enfim a arquitetura,
onde havia pedra
resta agora outra figura:
ruína em que o oceano
se ajoelha e bate,
eternamente bate, mas
onde jamais se apura.
(Primeiro livro de chuvas)

3. Nada breve a onomástica de deuses, poetas, figuras bíblicas, pintores e heróis míticos. Mas engana-se o leitor que atribua a esse recurso mera função classicizante. “A erudição se enruste, vez e outra” (Nejar), e aos nomes de Odisseu, Bandeira, Cristo e Jezebel vêm-se somar os de anônimos levantados do “chão comum” da memorablia do poeta: Anarina, Ulpiniano, Mariana, Nonato Correia, apenas para citar alguns desse “alfabeto de perdas”. E dentre todos, é a partir de uma quase ausência que opera a poesia de Iacyr Anderson Freitas. Apenas uma vez referido, um outro nome exsurge. Seja no seu traço saturnal e místico ou na busca das sombras amadas do passado, seja no “solilóquio de perdas” (Fábio Lucas) ou na “linguagem empenhada em testemunhar a realidade-em-trânsito” (Sonia Brayner), é Orfeu quem assombra a poética iacyriana. A infância é a sua Eurídice:

algo resiste em sua ausência
: esses olhos
esses pobres olhos foram seus um dia

o passado abre-se como um livro
ah
o passado é sempre um livro aberto
com uma página só

vazia
(O aprendizado da figura, “No jardim/XXVI”)

Mas ainda quando “O passado desata seus velames / sobre águas-vivas de terror e gesso” (Mirante, 8.), Orfeu não acolhe a inércia. Por isso o canto, para arrojar Argo ao oceano: “todo porto é um abandono // e essa aventura de nunca estar / que é toda viagem / e esse não ser que nos redime” (O aprendizado da figura, “E foram dias de rigor”). Canto coletivo, de todos e de cada um, pois a viagem desmerece o ego, então fluido em figurações, fugas e esfinges: “pergunta é cerne de homem” (Exercício estrangeiro, “Trilogia do gato”). Mesmo que resumindo em letras escuras a infância e o mar, a voz plural do poeta nos convoca a “Uma procura que jamais se esconde, / que não sabe sequer o que procura, / que desconhece até mesmo por onde / se esquivou a sua própria aventura” (Mirante, 32). E, nas muitas personae que este “exercício estrangeiro” nos oferta, compartilhamos também a busca “obstinada de uma geometria” (Margarida Salomão), capaz de destinar a nau a outros horizontes, de encontrar “um signo que é toda a infância” (O aprendizado da figura, “A primeira ilha”), de fazer do mundo um lugar de habitação – ainda que “reste apenas uma nau, / sozinha, / e um dique” (Messe, “Ao princípio”).

4. Como a dor ou as pequenas mortes, a poesia nos desperta e sacode. De nada adianta rasgar os calendários, condenar Orfeu às ilhas do exílio, ensurdecer o mar, pois “de muito longe / os ventos nos empurram” (Messe, “Não há missivas”) para os círculos da poesia. E se “até mesmo as leis têm seus carnavais” (Mirante, 8.), chegará o dia em que as verticais de Iacyr Anderson Freitas vençam a horizontalidade vesga do mercado editorial brasileiro para que um número maior de leitores possa experimentar esses dias de rigor e febre.


5. De Verso e palavra (1982) a Mirante (1999), a poética iacyriana está a exigir mais do que estas notas ligeiras. Ao menos em parte, a fortuna crítica que vem acumulando e a divulgação obtida para além de nossas fronteiras fazem justiça ao exercício de resistência, afeto e rigor que é toda a poesia de Iacyr Anderson Freitas. Quanto a estas notas, que tenham o mesmo destino reivindicado por Mallarmé para o “Préface” a Un coup des dés jamais n’abolira le hasard: “Gostaria que esta nota não fosse lida, ou que, apenas percorrida, fosse logo esquecida...”  

Iacyr Anderson Freitas
(Patrocínio do Muriaé, Minas Gerais, 1963)

terça-feira, 3 de maio de 2016

OSCAR DA GAMA (1870-1900)


UM POETA À PROCURA DA PRÓPRIA RUBRICA
NO COMPLEXO ESTILÍSTICO FINISSECULAR

Publicado originalmente na revista Verbo de Minas: Letras
(Juiz de Fora, CES/JF, v. 5, n. 10, jul./dez. 2006, p. 163-168)

Fernando Fiorese

Devido ao desaparecimento precoce – antes mesmo de completar 30 anos – e à reduzida (para não dizer inexistente) fortuna crítica, consoante a parcimônia da obra lírica publicada em vida, Luares (1892), e a restrita circulação dos títulos post-mortemNoctâmbulos e Flora rubra [1], não foi possível ao poeta, jornalista e comediógrafo juiz-forano Oscar da Gama (1870-1900) revisar os equívocos do primeiro livro de versos ou absorver os indicativos da exegese crítica de seus contemporâneos.
Comemorativa do centenário do volume póstumo Poesias, a presente publicação enseja recolocar em circulação a lírica de Oscar da Gama [2], permitindo-nos flagrar nos versos do jovem poeta os exercícios de procura da própria rubrica, tendo por cena o complexo estitilístico pós-romântico e por contracena o fin-de-siècle do Brasil oitocentista. A priori, acercar-se do cânone parnasiano parece-nos ser o modo privilegiado de Oscar da Gama nesta busca de uma marca poética singular. Trata-se de eleger afinidades, nominar os membros do grupo de pertença, realizar as hommages que lhe permitam adentrar os pórticos do Parnaso nacional. Proliferam, assim, os versos dedicados a poetas, intelectuais e escritores juiz-foranos (Lindolfo Gomes, Belmiro Braga, Heitor Guimarães, José Rangel e Estevam de Oliveira, dentre outros) e aos próceres – e mesmo muitos epígonos – do período realista-naturalista (Valentim Magalhães, Olavo Bilac, Artur Azevedo, B. Lopes, Augusto de Lima, Guimarães Passos, Lúcio Mendonça etc.).
Também as traduções que encerram Flora rubra – “Tu e eu” (“Tu e yo”) [3], do escritor, político e historiador Víctor Balaguer (1824-1901), uma das principais figuras da Renaixença catalã, e “Pai” (“Le père”), de François Coppée (1842-1908), poeta francês partícipe do Parnasse Contemporain – e a assinatura do principal parnasiano mineiro, Augusto de Lima (1859-1934), no prefácio de Luares, são indícios do empenho de Oscar da Gama em filiar-se à religião da arte do Parnaso. No entanto, desde os títulos dos livros aqui reunidos até algumas das constantes estilísticas e temáticas que caracterizam a poética oscariana, parece-nos que o autor juiz-forano, sem descurar do precedente Romantismo, oscila entre os múltiplos estilos do segundo Oitocentos, num regime de indecidibilidade e tensão que estende o seu arco do Realismo ao Simbolismo.


Do Romantismo, a principiar pelo acolhimento do elemento noite nos títulos Luares e Noctâmbulos, Oscar da Gama reverbera tanto o poema de “comício” – “Página ao Marechal”, “Versos (Recitados por uma atriz na festa da Auxiliadora Portuguesa)”, “A Silva Jardim”, “Ao Brasil!” (datado do primeiro 15 de novembro republicano), “Pesadelo” – quanto a prevalência da oscilação entre a redondilha maior, metro breve de cadência popular, e o nobre decassílabo. Em Flora rubra ressoam Les fleurs du mal baudelaireanas, indício de um Simbolismo postiço que, ao longo dos três livros aqui reunidos, reafirma-se na abundância de reticências e numa semântica da insinuação, ainda que contaminada pela eloquência dos parnasianos. Tais traços estilísticos, mesmo que em parte, antagonizam com a predileção pelas descrições objetivas, nítidas e estáticas dos cultores do “helênico poema de mármore”, para usar palavras do próprio Oscar da Gama.
Também ao mesmo Simbolismo deve-se tributar um certo pendor “decadentista”, que nos faz antecipar o pessimismo cientificista de Augusto dos Anjos (1884-1914), como exemplificam os versos de “Renúncia satânica” (“Ah! Que, de sob a máscara traiçoeira / Da face, surja enfim esta caveira...”), “Diálogo sinistro” (“– Podridão, de que flor és tu a essência horrível? / De que planta vens tu? Da eufórbia? Do estramônio? / E esse que te prepara, alquimista invisível, / Fantástico, espectral... quem é ele? O Demônio?”), “Versos a um louco” (Que tufão infernal perdeu-te o norte, / Que mal enorme e fundo te invalida, / Alma, que te partiste antes da morte, / Cérebro, que te apodreceste em vida!”) ou “Num cemitério”:

Aqui onde me vedes, aqui onde
Lá do mundo não chega a dor fingida...
E da boca, até mesmo a mais sentida,
Nenhum eco, nenhum à voz responde;

Aqui, aqui, sob a chorosa fronde
Da triste casuarina, aos céus erguida,
Oculto e escondo cauteloso a vida,
Como um avaro que um tesouro esconde.

Não vejais nisto tresloucado intento...
A humana voz é, como a das serpentes,
Vipérea, cheia de baldões e insultos!

Odeio-a... e ouvir, quero antes a do vento,
Assobiando aqui por entre os dentes
Escamados dos crânios insepultos.

Da mesma forma, o traço simbolista exsurge na alternância temática entre o amor idealizado – “Quem és tu, musa blasfema, / Para a epopéia suprema / Do Amor – o Zeus do Universo?” (“Excelsior”) – e o amor carnal, com o significativo predomínio deste último não apenas a reiterar a prevalente filiação parnasiana do autor, mas rubricando uma das principais características de sua obra, da qual destacamos os quartetos de “Erótica”:

O filtro embriagante e doce
Do teu lábio rubro eterno
É como se um néctar fosse
Ou se fosse algum falerno.

Sorvo-o enfebrecido e ardente,
Convulso, louco, sem pejos,
Na tua boca fremente,
Na taça rubra dos beijos.

Nas pontas eretas, túmidas,
Desses seios bem iguais
A duas pérolas úmidas,
Duas pérolas colossais!

E depois... num profundo hausto,
Osculando-te a garganta,
Eu caio, bêbedo, exausto,
De tanta volúpia, tanta!

O próprio Oscar da Gama, no poema “Sons e cores”, nos desvela a tensão ou indecisão que em sua obra figura entre os metros “esculturais” da estética plástica do Parnaso e o anelo de musicalidade que, a partir da divisa de Paul Verlaine (1844-1896) na sua Art poétique – “De la musique avant toute chose” –, tornou-se um postulado simbolista:

Dizem que a cor nos desperta
A vaga impressão incerta
Da música a mais sonora...
E, também, que os sons as cores
Lembram, embora incolores
E invisíveis, muito embora.

Duvidei; mas hoje o creio
Por Deus, por ti, por teu seio
Feito de neve e de olores;
Pois, esses teus olhos negros
São como doces alegros
Na doce escala das cores...

Aos traços temáticos e estilísticos até aqui assinalados, poderíamos acrescentar outros que, participando do cânone parnasiano, são na poesia de Oscar da Gama sintomas do empenho falho (?) do poeta no sentido de inscrever a sua rubrica na cena literária brasileira do segundo Oitocentos: “Novo condor, pela História / Traçando um áureo caminho, / Irei fazer o meu ninho / Lá nos píncaros da Glória!” (“Homo”). Grafado em pedra no monumento que a municipalidade fez erguer em homenagem ao autor de Luares no Parque Halfeld (centro de Juiz de Fora), tal quarteto diz-nos pouco desta poética que, muitas vezes ultrapassando os limites epocais e os horizontes da província, nos enseja inferir dos seus possíveis desdobramentos, precocemente interruptos, algo análogo aos versos primeiros de Manuel Bandeira (1886-1968). Neste sentido, para citar um único exemplo, “Os noivos” nos surpreende pela singeleza da forma e pelo lirismo coloquial:

Palavras de namorados,
Itinerário imprescrito
– Rumo talvez do Infinito,
Vão os dois, os braços dados.

Vão por escusas veredas
Alcatifadas de alfombras,
Fugindo ao luar; as sombras
Buscando das alamedas.

Não buscam jardins nem prados,
Trechos azuis do infinito...
– Todo lugar é bonito
Aos olhos dos namorados.

Mapear ressonâncias, inferir desdobramentos, enumerar constantes estilísticas e temáticas, sublinhar a dinâmica das tensões ou dizer dos limites horizontais do autor são estratégias que encontram o seu termo no ponto final que este prefácio já está por merecer. Tudo o que aqui ficou dito não deve servir de antolhos para a leitura da obra, na qual quaisquer referências a estilos de época e períodos literários são de todo prescindíveis. Ainda que seja no delírio do étimo, o cânone articula-se no bélico para destruir o prazer do texto, o espanto originário da leitura. “Tu le connais, lecteur, ce monstre délicat” – trata-se da obra na expectação de suas operações.

Notas

[1] Dois anos após a morte de Oscar da Gama, fez-se publicar em Juiz de Fora o volume Poesias (1902), reunindo os títulos inéditos Flora rubra e Noctâmbulos e a segunda edição de Luares, bem como as prosas de Folhas soltas.

[2] A convite da Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage (FUNALFA) da Prefeitura de Juiz de Fora, escrevemos o presente texto no inverno de 2002 para figurar como prefácio à reedição fac-similar de Poesias, de Oscar da Gama. No entanto, circunstâncias jamais explicadas determinaram que o poeta juiz-forano continue sem merecer a reedição de sua obra. 

quarta-feira, 16 de março de 2016

FICÇÕES EM TORNO DE UM POEMA


Depoimento apresentado no VIII Seminário de Pesquisa
do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da
UNESP/Araraquara (set. 2007) [1]

Fernando Fiorese


Com os meus agradecimentos a
José Luiz Ribeiro, Jesualdo de Almeida Castro, Paolo Menichini, 
Mauro Alvim, Maria Lúcia Outeiro Fernandes e Antônio Donizeti Pires.

 

Para o poeta, dizer do próprio processo de criação é uma urgência e um impudor. Da urgência, nos salva a incipiente tradição da vida literária brasileira de recolher o testemunho dos autores acerca dos seus modos particulares de escrita – e, por via de conseqüência, a parcimônia dos convites para que desvelem em público, de viva voce ou mesmo por escrito, os segredos da carpintaria poética. Trata-se, no entanto, de uma urgência apenas adiada, até que o impudor encontre ocasião de publicar a biografia de um poema (Drummond), a psicologia da composição (João Cabral), o itinerário de Pasárgada (Manuel Bandeira), o texto de consulta (Murilo Mendes) ou outro qualquer título com que se designe essas confissões de ateliê mudadas em verso ou prosa. Pessoal ou com fins proselitistas, meditabundo ou mero manual de instruções, amoroso ou irritado, o escrutínio da oficina lírica guarda algo de obsceno, próximo de um strip-tease que, quando realizado à perfeição, mais aciona as ficções do voyeur do que desnuda os segredos da carne.
E digo ficções porque com essas o poeta adorna e eleva o trabalho extremo e sujo da criação, porque o gesto mesmo de escrever está cercado de pudor igual ao de defecar, como ressalta João Cabral de Melo Neto (1999, p. 413):

Por que é o mesmo o pudor
de escrever e defecar?
Não há o pudor de comer,
de beber, de incorporar,
e em geral tem mais pudor
quem pede do que quem dá.
Então por que quem escreve,
se escrever é afinal dar,
evita gente por perto
e procura se isolar.

Escrever é estar no extremo
de si mesmo, e quem está
assim se exercendo nessa
nudez, a mais nua que há,
tem pudor de que outros vejam
o que deve haver de esgar,
de tiques, de gestos falhos,
de pouco espetacular
na torta visão de uma alma
no pleno estertor de criar.

Mas não apenas o pudor interdita o dizer os intestinos da criação. Há, maiúsculo, o acaso, do qual exsurge a obra como linguagem feita matéria. E como o acaso tem um caos dentro, pouco ou nenhuma memória guarda o poeta desta deriva entre o silêncio e a palavra. E quando a memória fraqueja ou falta, resta a ficção que, análoga aos mitos genésicos, dá conta da passagem do caos ao cosmos. Mesmo porque, aquele que escreve sobre o poema fora do poema, já não é poeta. Aquele que dá a ver as verdades impudicas da criação não alcança erguer-se do caos. Em prosa, o poeta desconcerta ou simplesmente engendra as fantasias de quando era poeta, ou seja, de quando operado pelas forças rivais da linguagem. Assim, aos eventuais leitores ofereço como horizonte deste texto as seguintes palavras de W. H. Auden (1957, p. 50):

Aos olhos dos outros, um homem é poeta se escreveu um bom poema. A seus próprios olhos, é poeta apenas no momento em que está fazendo a última revisão de um novo poema. No momento anterior, era contudo apenas um poeta em potencial; no momento posterior, é um homem que parou de escrever poesia, talvez para sempre (Tradução minha).

Daí porque o que aqui vai escrito situa-se na fronteira entre o testemunho e o ensaio – também e principalmente no sentido teatral do termo –, ali onde a fala treme entre o eu civil e o eu da escrita. Não que se pretenda pessoal e intransferível, pois urdido no deslize de muitas vozes, no acolhimento do silêncio, na afirmação de lacunas e margens – como uma apóstrofe, como um convite que seduza outras mãos leitoras para refazer as ficções que no texto se faz e se desfaz. Aqui escreve a mão indestra, aquela que participa do espanto de quando, diante do espelho, descubro o que me escapa ou ultrapassa.


Não são poucas as ficções que derivam de e para o poema-livro Um dia, o trem (FURTADO, 2008). Origem não há, mas posso mudar em fábula tanto o convite de um amigo [2] no sentido de fornecer-lhe algum poema sobre trem para um espetáculo teatral jamais levado à cena, quanto a epígrafe – “A infância é ferroviária” – encontrada em certa crônica de Paulo Mendes Campos incluída numa antologia que me emprestou o mesmo amigo, talvez com o intuito de garantir o texto prometido. Tais circunstâncias, ainda que de modo velado, são registradas na edição do livro. Assim, da dedicatória consta o nome do autor do convite acima citado, enquanto em nota rubrico o período de elaboração do poema – o qual, por demasiado, não me permitiria atender à demanda teatral –, bem como a função motora da epígrafe do cronista mineiro:

Iniciei o poema Um dia, o trem em Cabo Frio durante as férias de julho de 2000, concluindo na cidade de Juiz de Fora em meados de janeiro de 2004, com alguns poucos acréscimos e muitas correções posteriores.
A crônica de Paulo Mendes Campos, que este poema “aciona e epigrafa” (conforme aludo na seção "Mesma água"), foi publicada sem título na Pequena antologia do trem: a ferrovia na literatura brasileira, organizada por Laís Costa Velho... (FURTADO, 2008, p. 45).

A tais fabulações, embora o lugar-comum, posso acrescentar a infância ferroviária que me faltou, uma vez que, nas palavras de Michel Foucault (1992, p. 31), “a ausência é o lugar primeiro do discurso”. Quando muito, tive férias ferroviárias. Já que restaram na cidade natal (Pirapetinga) apenas as ruínas da estação, adornada de um cúmulo de dormentes, trilhos e vagões carcomidos, o trem atravessou a minha infância na narrativa dos adultos ou nos verões férreos e feéricos de um município vizinho – Recreio –, cujo nome diz per se a substância do lugar e do tempo. Por contaminação e tangência, a estrada de ferro figura nas memórias inventadas da minha infância, desdobrando-se na poesia em metáforas que rivalizam com aquelas outras que denomino costureiras [3]. Não por acaso, são estas as imagens com que se desvela os modos e manobras da escrita de Um dia, o trem:  

Nesta escrita, difícil operar
senão ao modo de, como por agulhas,
sejam as que, entre a hora e o lugar,
decidem se a linha míngua ou demuda
(ao foguista cumpre apenas queimar),
sejam aquelas que emprega a costura
e de viés ensinam a mão a chulear
onde nos punge o poema, suas rasuras.
(FURTADO, 2008, p. 31)

São duzentos e quarenta e oito versos em trinta e uma estrofes, agrupadas em quinze seções de duas e a última com apenas uma estrofe. Não há qualquer rigor métrico ou rímico, embora a prevalência do decassílabo e das rimas toantes. Tal costura deriva do “duelo do metro com o acidente” (Ibidem, p. 29), através do qual o poema realiza a convergência do cálculo do discurso paterno e das desmesuras de uma fala menina, do tempo perdido do adulto e do presente puro da criança, do vocabulário algo culto do poeta e das palavras simples da infância. Assim embaralhadas e confundidas, tais vozes intentam narrar – este talvez o logro maior destas ficções – a morte simbólica do pai ante a aparição abrupta do trem.
Não há aqui o pai maiúsculo de Freud ou Kafka, pois indecidível entre “o menino que foi e nele avulta” (Ibidem, p. 13) e a ciência “dos muitos nãos / com que a madureza nos apouca” (Ibidem, p. 41), entre as lembranças da infância ferroviária e as pequenas mortes que atravessou para estar ali, de mãos dadas com o filho. Daí o “escrever por agulhas” que intitula a décima seção do poema: reunir duas margens, costurar duas vozes, vizinhas e estrangeiras a um só tempo, “porque nunca se trata da mesma água” (Ibidem, p. 37), embora fluindo no mesmo discurso-rio. Ao menino, “sem palavras ou peias”, importa a matéria trem, “aquela demasia de ferro e fuga, / crescida de suas próprias engrenagens, / qual foguete quando no céu se abre” (Ibidem, p. 19), enquanto ao “pai menor” resta apenas mudar menino e trem em metáfora, em linguagem. Porque ainda quando “passar o menino a limpo e a luto” seja apenas “um acidente de percurso” e não a “cura do desacordo / entre a mão que escreve e a com que assino” (Ibidem, p. 41), a textualização da infância opera como um modo de adiar aquela outra morte, “maiúscula e cabal” (Ibidem, 23). Ou, ao menos, fazer dela também metáfora, figura de linguagem sob controle:

Há de entender o leitor tanto adiar,
pois o menino no adulto demora
conforme uma medida que lhe é própria:
não marca tempo, nem guarda o lugar.
Aponta a morte com o riso fácil
de quem, com o que foi e o que deveria,
reúne em si duas margens e, à revelia,
publica aqui outra edição do desastre.
(Ibidem, p. 43).


Às linhas autobiográficas e ficcionais deste bordado de muitas pontas soltas e arremates precários, acrescente-se ainda a metalinguagem. Pois para traduzir o menino na bitola lírica, cumpre ao poeta fazê-lo conforme as lições da infância ferroviária, qual seja, os modos “como no texto se dá a forma-trem” (Ibidem, p. 25):

Trem é texto quando encontra desvio
ou nos surpreende em meio ao pontilhão,
e da origem as pernas se desdão
para o mundo acomodar neste livro.
Mas texto é menos trem que o enguiço
de saber que no verso desembarca
apenas a prosa dessas coisas arcas
com que o menino se salva do olvido.

Seja a prosa como dormir num trem
e a poesia quando a aduana sobrevém:
naquela, até o sonho encontra sua reta,
enquanto nesta, nos sacode e esperta
uma voz de si mesma estrangeira
– e como fosse toda ela suspeita,
a bagagem uma outra mão desfaz,
mão que vacila entre linhas rivais.
(Ibidem, p. 35)

Na tensão entre poesia e prosa, entre cálculo e desastre, entre madureza e infância, Um dia, o trem desenreda a meada de memórias e vozes. Tal fora a crônica de uma morte anunciada e sempre adiada pela palavra fantasmática do menino que vigora na figura paterna e a desdobra em suas muitas ficções. São essas artifícios necessários para que o poema, corpo sem origens e avesso ao autor, seja o lugar onde dizer da criação é vencer a morte, ainda que no precário domínio da linguagem. Mesmo quando um “corpo discorde”, tem por motores a urgência e o impudor que faz esplender a escrita, seus intestinos, suas misérias. Porque urgente também é o trem que baralha as linhas deste autor/leitor e, despudoradamente, inaugura o horizonte que, para além do livro, nos reúne.
“Análoga àquela que assombra o pai / quando dele o trem a altura subtrai” (Ibidem, p. 39), uma outra morte enseja e remata este texto. Porque se ao homem assoma o próprio cadáver quando o menino o ultrapassa, regozija-se aquele desta morte feliz porque simbólica. Ao contrário, está morto por inteiro (e, talvez, para sempre) o poeta que realiza aqui o trabalho de luto do que foi vida e vigor nas secretas operações da escrita, num ritual sem esperança ou garantia de ressurreição.

Notas

[1] Publicado em Matéria de poesia: crítica e criação, organizado por Antônio Donizeti Pires e Maria Lúcia Outeiro Fernandes (Araraquara; São Paulo: FCL-UNESP Laboratório Editorial; Cultura Acadêmica, 2010, p. 207-214)
[2] Refiro-me a José Luiz Ribeiro, dramaturgo e diretor do Centro de Estudos Teatrais/Grupo Divulgação, vinculado à Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
[3] Não poucos leitores têm associado tais metáforas costureiras a uma certa vizinhança com a escrita feminina, o que não ousaria negar. No entanto, apenas para registrar um biografema, devo referir-me às personagens masculinas do universo da costura, os alfaiates, ofício de meus tios maternos.

Referências bibliográficas


Auden, W. H. Making and judging poetry. The Atlantic, Washington, v. 199, n. 1, p. 44–52, jan. 1957.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Trad. António Fernando Cascais e Edmundo Cordeiro. Lisboa: Veja, 1992.
FURTADO, Fernando Fábio Fiorese. Um dia, o trem. São Paulo; Juiz de Fora: Nankin; Funalfa, 2008.
MELO NETO, João Cabral. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1999.


Post scriptum:
Um dia, o trem, de Fernando Fiorese, pode ser adquirido no site da Nankin Editorial – http://www.nankin.com.br – ou nas melhores livrarias virtuais.

               

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

“ENTRE A FOTO E O FATO”


Em HOMENAGEM AO poeta Mauro Fonseca

Plus douce qu’aux enfants la chair des pommes sures...
(Mais doce que ao menino os frutos não maduros...)
Arthur Rimaud, “Le bateau ivre”
Trad. Ivo Barroso

Fernando Fiorese

Dois fenômenos complementares e adversativos assinalam o acidentado trânsito entre a infância e a juventude: a tarefa trôpega, mas urgente e apaixonada, de participar dos acontecimentos do mundo e o medo pânico de afirmar-se homem abismado no tempo presente, de fazer-se sujeito histórico e assim enfrentar a inelutável consciência da morte – “essa terrível prenda” que o fim da infância nos dá. Daí que, a princípio e no mais das vezes, as incursões aventurosas do adolescente para além das paredes da casa paterna sejam apenas a busca de um outro abrigo, uma outra clausura, algo como um quadrado mágico porque resguardado pela linha de força que atrai o jovem e o mantém junto ao círculo de amigos. E quase ao modo de uma ciranda infantil – sempre de mãos dadas, ainda que em segredo, seja por mero pudor ou para afirmação das suas personae –, a confraria de garotos e garotas logo rubrica no mapa da cidade, não por acaso, as suas rotas de fuga e os seus lugares protegidos, caricaturas de um útero sem mãe – os mesmos percursos, as mesmas ruas, as mesmas esquinas, os mesmos bares, as mesmas praças, os mesmos locais ermos e incógnitos.
Em muitos outros casos, esta tensão entre as delícias libertárias e libertinas prometidas pela vida exterior e os medos próprios daquele que se lança ao mar do mundo sem roteiro ou bússola faz com que a criança imaginosa prestes a morrer custe a despregar do jovem em luta para vir a ser. Por conta disto, a ficção – em particular aquela amealhada nos livros, nos filmes, nas letras de música e nas peças de teatro – costuma contaminar o real, a ponto do olhar do adolescente enfeitar os acontecimentos mais ordinários e as pessoas mais prosaicas com características emprestadas de enredos literários e personagens cinematográficas. As demasias da fabulação infantil demoram a arrefecer e desertar, pois são o anteparo necessário ao choque de realidade que transtorna as verdades assentadas no chão sólido e seguro da ciência familiar. A cada movimento, o mundo adulto dá notícia ao calouro de que não há conta, peso ou medida para a matéria bruta e caótica da realidade. Resta-lhe, pois, o imaginário como pièce de résistance ao cabal desmantelo do mundo que conhece e acredita real. Ao menos até que também a imaginação seja domesticada ou arrematada pela pragmática da sociedade de consumo.
Foi aos dezessete anos que conheci o poeta Mauro Fonseca (1962-1988). Aos dezessete anos, ambos às voltas com a “Sturm und drang of adolescence”, conforme a feliz imagem que W. H. Auden (1907-1973) emprega em “Letter to Lord Byron” para traduzir a sua própria travessia da infância à mocidade:

We all grow up the same way, more or less;
Life is not known no give away her presents;
She only swops. The unselfconsciousness
That children share with animals and peasants
Sinks in the Sturm und drang of adolescence.
Like other boys I lost my taste for sweets,
Discovered sunsets, passion, God, and Keats.


Todos crescemos de modo igual;
A vida não dá nada de presente;
Ela só barganha. O inconsciente,
Que partilham menino e animal,
Afunda na Sturm und Drang do moço.
Tal outros garotos, perdi o gosto,
Topei poentes, paixões, Deus e Keats.
(Tradução minha.)

Arthur Rimbaud aos dezessete anos, outubro de 1871
Fotografia de Étienne Carjat

Dezessete anos – a idade que, através do poema “Roman”, o enfant terrible Arthur Rimbaud (1854-1891) elegeu como símbolo da paixão abrupta e incerta, da errância, da boemia e da rebeldia da juventude:

On n’est pas sérieux, quand on a dix-sept ans.
– Un beau soir, foin des bocks et de la limonade,
Des cafés tapageurs aux lustres éclatants!
– On va sous les tilleuls verts de la promenade.

Les tilleuls sentent bon dans les bons soirs de juin!
L’air est parfois si doux qu’on ferme la paupière;
Le vent chargé de bruits, – la ville n’est pas loin,
A des parfums de vigne et des parfums de bière...

II

– Voilà qu’on aperçoit un tout petit chiffon
D’azur sombre, encadré d’une petite branche,
Piqué d’une mauvaise étoile, qui se fond
Avec de doux frissons, petite et toute blanche...

Nuit de juin! Dix-sept ans! – On se laisse griser.
La sève est du champagne et vous monte à la tête...
On divague; on se sent aux lèvres un baiser
Qui palpite là, comme une petite bête...

III

Le cœur fou Robinsonne à travers les romans,
– Lorsque, dans la clarté d’un pâle réverbère,
Passe une demoiselle aux petits airs charmants,
Sous l’ombre du faux-col effrayant de son père...

Et, comme elle vous trouve immensément naïf,
Tout en faisant trotter ses petites bottines,
Elle se tourne, alerte et d’un mouvement vif...
– Sur vos lèvres alors meurent les cavatines...

IV

Vous êtes amoureux. Loué jusqu’au mois d’août.
Vous êtes amoureux. – Vos sonnets La font rire.
Tous vos amis s’en vont, vous êtes mauvais goût.
– Puis l’adorée, un soir, a daigné vous écrire!...

– Ce soir-là,... – vous rentrez aux cafés éclatants,
Vous demandez des bocks ou de la limonade...
– On n’est pas sérieux, quand on a dix-sept ans
Et qu’on a des tilleuls verts sur la promenade.


I

Não se pode ser sério aos dezessete anos.
– Um dia, dá-se adeus ao chope e à limonada,
À bulha dos cafés de lustres suburbanos!
– E vai-se sob a verde aléia de uma estrada.

O quente odor da tília a tarde quente invade!
Tão puro e doce é o ar, que a pálpebra se arqueja;
De vozes prenhe, o vento – ao pé vê-se a cidade, –
Tem perfumes de vinha e cheiros de cerveja...

II

– Eis que então se percebe uma pequena tira
De azul escuro, em meio à ramaria franca,
Picotada por uma estrela má, que expira
Em doce tremular, muito pequena e branca.

Noite estival! A idade! – A gente se inebria;
A seiva sobe em nós como um champanhe inquieto...
Divaga-se; e no lábio um beijo se anuncia,
A palpitar ali como um pequeno inseto...

III

O peito Robinsona em clima de romance,
Quando – na palidez da luz de um poste, vai
Passando uma gentil mocinha, mas no alcance
Do colarinho duro e assustador do pai...

E como está te achando imensamente alheio,
Fazendo estrepitar as pequenas botinas,
Ela se vira, alerta, em rápido meneio...
– Em teus lábios então soluçam cavatinas...

IV

Estás apaixonado. Até o mês de agosto.
Fisgado. – Ela com teus sonetos se diverte.
Os amigos se vão: és tipo de mau gosto.
– Um dia, a amada enfim se digna de escrever-te!...

Nesse dia, ah! meu Deus... – com teus ares ufanos,
Regressas aos cafés, ao chope, à limonada...
– Não se pode ser sério aos dezessete anos
Quando a tília perfuma as aléias da estrada.
(Trad. Ivo Barroso)
  
Aos dezessete anos, Rimbaud foi retratado por Étienne Carjat (1828-1906) numa fotografia que se tornou quase alegoria da idade experimental e inamovível da lírica moderna. Aos dezessete anos, conheci o poeta Mauro Fonseca e topei com a obra do voyant Rimbaud. Eram tempos férreos e feéricos, como costumam ser os verdes anos da juventude e como foram os anos de chumbo da ditadura militar (1964-1985). Talvez por conta disto – e também de tudo quanto ficou dito nos parágrafos anteriores –, foto e fato se fundiram na memória daquele distante ano de 1980.
A imagem daquele jovem sozinho e silencioso, assentado nos primeiros degraus de uma escada nos fundos de um enorme salão branco – o corpo pequeno, magro e como que contorcido por um qualquer incômodo físico ou espiritual inominável; os cabelos em desalinho; calça e camisa despreocupadas por inteiro da moda; um cigarro transitando nervoso entre a mão e a boca; as pernas recolhidas, talvez pouco à vontade porque suspensa a errância que lhes era própria; o olhar ora alheio, ora oblíquo, ora lâmina –, a essa imagem colou-se de forma indelével as figurações e as lendas em torno de Rimbaud. Em segredo, sem que nem mesmo ele soubesse, tornou-se um meu Rimbaud pessoal, doméstico, contemporâneo, tangível. Porque os encontros posteriores com Mauro Fonseca, ao longo dos anos 1980, acrescentaram àquela imagem primeira outros traços que, de forma equívoca ou não, depreendia eu das seguidas leituras da obra e da biografia de Rimbaud. O tempo tratou de corrigir muitos enganos e aplacar algumas ignorâncias em relação à poética do autor de “Le bateau ivre”. 

Foto de Mauro Fonseca [s.d.]
Extraída de Entre o aborto e o parto: uma antologia
(Juiz de Fora: Funalfa, 2015)

Também o tempo e a madureza que este nos empresta – quer a desejemos ou não – se incumbiram de apartar os mitos acerca de Rimbaud (a foto) dos traços do amigo real e próximo Mauro Fonseca (o fato), os quais podem ser abreviados nos seguintes termos: a alegria provocadora do menino que quebra todos os brinquedos para inventar outros e resistir na infância; o jeito maladroit para as coisas da vida prática; a afirmação do caráter heróico de estar à margem da sociedade burguesa; a ânsia por uma vida de aventuras que o levou a uma temporada em Rondônia; a crença no caráter demiúrgico da palavra poética, aferrado que era à ideia do enthousiasmós grego; a ternura desmedida para com os despossuídos e os simples de coração; o pendor místico, que encontra em Francisco de Assis a sua mais elevada e cabal inspiração; a melancolia de quem se confronta com as rodas dentadas de um tempo histórico bárbaro e sem sentido.
Mauro Fonseca foi, ao mesmo tempo, um menino à cata das Illuminations que a poesia pode oferecer aos tempos sombrios e um homem cuja delicadeza não resistiu às numerosas e agônicas saisons en enfer do século XX. Sobre ele, não tenho mais palavras a serem ditas, exceto aquelas com que Murilo Mendes encerra o “retrato-relâmpago” de São Francisco de Assis: “... um inconformista, um rebelado, um fuorilegge; tal seu mestre”. 

Juiz de Fora, 21 de maio de 2015,
no aniversário de 53 anos do poeta Mauro Fonseca


Entre o aborto e o parto: uma antologia,
obra organizada pelo filho do autor, Mauro Morais
(Juiz de Fora: Funalfa, 2015)