domingo, 30 de setembro de 2012

Moacyr Scliar (1937-2011)



A marca humana de questionar e de emocionar

Na biografia de minha geração, cujo período de formação se deu na primeira metade dos anos 1980, a descoberta da literatura brasileira contemporânea (dos anos 1950 em diante) se confunde com o doloroso desvelamento da nossa realidade social e política, ainda oculta naquele período sob a propaganda ideológica do país que vai pra frente, sob os efeitos pirotécnicos e artificiosos do milagre econômico da década de 1970, sob o slogan “Brasil: ame-o ou deixe-o”, grafado à força nos corpos e nas mentes de quantos ousaram rebelar-se contra a ditadura implantada pelo golpe militar de 1964.
 Desde a imprensa e as artes até as universidades, partidos, sindicatos e outras organizações civis, as vozes públicas que teimavam em desafinar o coro dos contentes foram silenciadas ou restringidos o volume e a amplitude de sua manifestação. Domesticados e encobertos pelas artes de berliques e berloques do discurso oficial, os paradoxos e paroxismos do desordenado e selvagem processo de industrialização do país eram meticulosamente expurgados do horizonte de informação do cidadão comum. Ainda quando este não pudesse escapar da violência, da miséria e da bárbara injustiça social que proliferavam na realidade concreta das grandes e médias cidades brasileiras. Mesmo o discurso mais elaborado não alcança impedir que se manifeste a crueza e o vigor do real.
Embora os limites de seus efeitos políticos e sociais num país de analfabetos e frágil tradição de leitura – e talvez por isto um mínimo menos vigiada pela censura –, a literatura tornou-se uma das vias privilegiadas de acesso da minha geração para o conhecimento do embate que, na cena urbano-industrial desencadeada pelo desenvolvimentismo da ditadura, travavam as forças da barbárie e da civilização. Dentre muitos outros, escritores como Rubem Fonseca, João Antônio, Dalton Trevisan, Luiz Vilela, Ignácio de Loyola Brandão, Antônio Torres, João Ubaldo Ribeiro e Sérgio Sant'Anna trataram de traduzir “o tempo presente, os homens presentes, a vida presente”, desnudando as grandes questões do Brasil contemporâneo. Das populações periféricas e marginalizadas às elites econômicas, com privilégio da classe média urbana, produziram eles um retrato das misérias, contradições e perplexidades que nos acossavam na segunda metade do século XX.
Elaborada de forma aleatória e com apenas alguns poucos prosadores que se encontram em faixa etária próxima, à relação anterior torna-se imprescindível ajuntar o nome de Moacyr Scliar, morto no último dia 27 de fevereiro, às vésperas de completar 74 anos. A reunião de narrativas curtas intitulada A balada do falso Messias (1976), não por acaso publicada na coleção “Nosso Tempo” da Editora Ática, foi o título que, ainda em princípios dos anos 1980, me introduziu à obra deste escritor gaúcho. Estavam ali os arquétipos judaicos e bíblicos aclimatados à realidade brasileira (conto-título), a dor e o vazio existenciais do homem degradado pelo poder do capital (“Agenda do executivo Jorge T. Flacks para o dia do Juízo Final”, “Comendo papel”), o humor refinado e ferino a desvelar e corroer as menores idiossincrasias da classe média (“Escalpe”, “Ofertas da Casa Dalila”), o questionamento da função social do escritor e da literatura na sociedade contemporânea (“Testemunho”, “Os contistas”). Ao longo dos últimos 30 anos e ao acaso das leituras, enfileiraram-se na estante e na memória outros tantos romances e coletâneas de contos de Scliar – O exército de um homem só (1973), Histórias da terra trêmula (1976), Os deuses de Raquel (1975), A guerra no Bom Fim (1972), O carnaval dos animais (1968), O anão no televisor (1979), O ciclo das águas (1975) –, sem jamais arrrefecer o alumbramento deste leitor diante de uma escrita que, através de narrativas escorreitas e de fácil apreensão, traz a marca humana de questionar e de emocionar, das lágrimas ao riso.

Publicado no jornal
Tribuna de Minas, Juiz de Fora, 06 mar. 2011,
por ocasião da morte de Moacyr Scliar (1937-2011)

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

A infantilização da cultura



Fernando Fiorese

Nos anos 70, Edgar Morin afirmava que “a cultura de massa desagrega os valores gerontocráticos, acentua a desvalorização da velhice, dá forma à promoção dos valores juvenis, assimila uma parte das experiências adolescentes”. No entanto, ressalta o pensador francês, a cristalização dos valores de contestação também rubrica a adolescência: “... repugnância ou recusa pelas relações hipócritas e convencionais, pelos tabus, recusa extremada do mundo”.
Assim, pode-se dizer que, entre 1950 e 1970, a cultura de massa empenhou-se por harmonizar os desejos dissonantes da juventude sob as formas estandardizadas dos mass media, com o objetivo de “enfraquecer as arestas e atrofiar as virulências”. No entanto, os valores adolescentes demonstraram-se por demais antagônicos e contestadores, como atestaram as rebeliões estudantis de fins da década de 1960. As tentativas de controlar e padronizar os paradoxos e os paroxismos juvenis determinaram apenas a exacerbação de manifestações conturbadas e avessas às necessidades do ciclo inelutável de produção e consumo.
A juventude, então, denunciava com vigor e virulência os arquétipos empregados pela indústria cultural na produção dos bens simbólicos da sociedade de consumo: amor, felicidade, valores privados, individualismo etc. E também as estratégias de elisão da morte (representada pelo processo de envelhecimento) e de afirmação do tempo histórico linear, do presente contínuo, sobre o qual se constrói a ilusão de uma futura idade de abundância e liberdade.
Não por acaso, nas palavras do poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz, “o descrédito do futuro e de seus paraísos é geral. Não é de se estranhar: em nome da edificação do futuro, a metade do planeta cobriu-se de campos de trabalhos forçados”. As rebeliões juvenis denunciavam o ocaso dos projetos de eternidade e de futuro, disseminados, respectivamente, pela teologia cristã ocidental e pela teoria marxista ortodoxa. Ambas promoveram a desvalorização do corpo e da imaginação como fontes de prazer para torná-los força de trabalho. “Em nome do futuro”, acrescenta Paz, “completou-se a censura do corpo com a mutilação dos poderes poéticos do homem.”
Nas rebeliões estudantis, alia-se a valorização do corpo e do imaginário à recusa dos grandes discursos ideológicos no intuito de abalar as colunas do tempo linear e do presente contínuo que nos oprimem em benefício da construção de um futuro utópico. A juventude, ainda segundo Paz, espera “instintiva e confusamente que a destruição deste presente provoque o aparecimento do outro presente e seus valores corporais, intuitivos e mágicos. Sempre a procura de outro tempo, o verdadeiro”.
Não tardaria a reação da cultura de massa diante da rebeldia incontrolável e inesgotável da juventude. Necessário forjar nos vazios da ideologia estereótipos mais afeitos à fórmula do consumo passivo individual. Neste sentido, elege-se a infância como lugar privilegiado para o sequestro dos temas que, testados no decorrer da década de 1980, sobredeterminaram os produtos culturais de fins do século XX. Mas ressalte-se que não se trata da infância ela-mesma, com seus valores ativos de desvelamento do mundo, encontro com os materiais, afirmação dos sentidos, exercício dos instintos, atividade ininterrupta, espanto e aventura.
Ao contrário, nos últimos 20 anos nos deparamos com uma infantilização dos produtos culturais (programas televisivos, música, moda etc.) engendrada a partir do desfibramento e da simulação das características da infância: deslumbramento diante das imagens da hiper-realidade criada pela tecnologia, distanciamento dos materiais, negação dos demais sentidos em nome da hipertrofia do olhar, apatia dos instintos e passividade muscular. De todos os modos, acentua-se a supressão da realidade em benefício do signo, promovendo o rompimento das relações do homem com o concreto e o humano.
Quer nos parecer que o segundo batismo da infância pela tecnocultura representa mais uma estratégia da sociedade de consumo no sentido da elisão do ser-para-a-morte. Ainda quando o processo de infantilização da cultura, pela perigosa aproximação entre princípio e fim, remeta aos signos da morte, trata-se não do morrer, mas do regressar ao útero materno, onde estamos a salvo da brutalidade do mundo contemporâneo. Imóveis e protegidos no regaço da mãe-media, podemos enfim habitar um lugar alheio à morte e à violência.
Os programas infantis (e não apenas eles) veiculados pela televisão configuram um convite diário à vivência de um “mundo infantil” alienado da realidade concreta, pois experimentado tão-somente no espaço-tempo virtual. E assim, crianças, jovens e adultos substituem o desejo da “eterna juventude” de décadas anteriores pelo sonho da “infância eterna”, num processo de regressão de tal forma acelerado que, talvez, no decorrer do século XXI nos conduza à fetalização dos produtos culturais. Ou seja, à elaboração pela indústria cultural de bens materiais e imaginários que tenham como paradigma as necessidades e desejos do ser humano em estado intra-uterino. 
De qualquer modo, até então avessa à linha de produção e olvidada pelas estratégias de consumo, no decorrer das últimas décadas do século XX a infância tornou-se protagonista da cultura de massa, contribuindo não apenas com a absorção de produtos os mais diversos, mas também com sua força de trabalho. 

Publicado no jornal Tribuna de Minas
Juiz de Fora (MG), em 19 nov. 1989

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

[Prefácio para livro de Júlio Polidoro]



OUTRO SOL (POEMAS, 2004), DE JÚLIO POLIDORO
  
Fragmentos desentranhados da lírica de Júlio Polidoro
ou
Circunvoluções em torno de Outro sol

Fernando Fiorese

1a

Os teóricos devem à literatura, salvo engano, um estudo minucioso acerca das circunstâncias que determinam se torne inédito ou bissexto um escritor, um poeta. Tal estudo muito contribuiria para a compreensão do desejo de Kafka, assinalado por Blanchot, “de desaparecer, discretamente, como um enigma que quer escapar do olhar”. Talvez pudesse explicar também o contraponto entre o prolífico prosador Pedro e o parcimonioso poeta Nava. Para este estudo, não tenho mais que uma epígrafe extraída dos fragmentos de Heráclito:

Como alguém poderia manter-se encoberto face ao que nunca se deita?

1b

Mesmo quando se alcança a higiene da metafísica cristã, a obra dos deuses resta como paradigma e horizonte das operações humanas. E o livro, lugar criado pela palavra, permanece um ersatz menor do Livro, brutta copia do Lógos originário, caricatura do cosmos engendrado por mãos imortais. E se a obra se dá em dispersão, alheia a qualquer projeto ou cálculo, uma vez mais e ainda se impõe o pensar do Skoitenós grego:

De coisas lançadas ao acaso, o arranjo mais belo, o cosmos.

2

Em muitos sentidos, os fragmentos citados se prestam ao avizinhar-se da obra de Júlio Polidoro, coligida neste volume. Antes de tudo, pelo aspecto fragmentário e casual com que o poeta a foi construindo, sempre tensionada entre as tentações do inédito e a dispersão do bissexto. Como dormisse longos sonos, como se fizesse de e nos lapsos, como perseguisse um mapa secreto ou aleatório, como indecidível entre a reta e a curva.

2a

Como dormisse longos sonos, sem jamais se deitar, a poesia de Júlio Polidoro exsurge ao acaso. Afora os textos dispersos em jornais, revistas, antologias e coletâneas, Treze poemas essenciais (1979), Pequenos assaltos (1990) e Orla dos signos (2001) são as marcas visíveis desta travessia pontuada de lacunas temporais demasiado extensas. E ainda quando o poeta se empenha em ordenar a dispersão – como em Orla dos signos, no qual publica na íntegra os livros anteriores e antologia dois outros inéditos –, resiste a vis fragmentária e casual da obra em operação. Talvez porque nada possa o autor contra as linhas de força que aciona e o enredam.

2b

Como se fizesse de e nos lapsos, desta obra pouco nos dizem as datas com que o poeta rubrica cada um dos oito títulos aqui reunidos, inéditos em sua maioria. Mas, se não realiza o fantasmático desejo de ordenação – mesmo porque realizá-lo seria trair o acaso como motor da sua escrita –, Júlio Polidoro nos oferece em Outro sol o lugar único que o verter múltiplo desta lírica tanto buscou e merecia.

2c

Como perseguisse um mapa secreto ou aleatório: assim o leitor deste livro de livros, no qual proliferam poemas sem título ou apenas numerados, sonetos e formas brevíssimas, a assinalar o jogo em que o poeta o dispõe e propõe. Pois esta reunião é um puzzle que se vai armando – parece que lhe faltam peças, mas estas apenas se escondem entre o cúmulo de fragmentos, se multiplicam como num mosaico de espelhos.

2d

Como indecidível entre a reta e a curva, pode-se ler Outro sol, pois algumas seções ou livros inteiros se armam como fossem um único e mesmo poema, costurado pelo desdobrar das pequenas diferenças de temas, imagens e palavras; enquanto outras partes e títulos mal se alinhavam – e então sobram pontas nestes fragmentos crescidos uns de costas para os outros. E assim, entre o afeto e o desacordo, a lírica de Júlio Polidoro ora se entrega, comum e amorosa, ora se recusa ao diálogo, obscura, inamistosa.

3

Tal como entre os pensadores originários, aqui o mistério se diz músculo e mística, número e desmesura, alumbramento e medo. Tal como entre os fragmentos daqueles, em Outro sol não há modo de demarcar núcleos temáticos, de rubricar traços de estilo, de assinalar uma progressão poética, de disciplinar a palavra. Mas, para esta reunião, convergem os mesmos elementos primevos (terra, água, fogo, ar), os mesmos deuses, as mesmas imagens arquetípicas, as mesmas questões inelutáveis que, desde sempre, alimentam o thaumázem do poeta e do pensador. E não se trata de limite ou restrição, pois mesmo “a história universal”, nos diz Borges, “talvez seja a história da diferente entonação de algumas metáforas”. Ao leitor, o tom e o tonos que Júlio Polidoro empresta a essas metáforas.

Juiz de Fora, véspera de primavera, 2004

domingo, 16 de setembro de 2012

José Luiz Ribeiro, dramaturgo [II]

 
 Dois textos em homenagem à obra do homem de teatro
José Luiz Ribeiro
 
 
 Desmontando a família

Fernando Fiorese

Os muitos modos do riso mais do que aliviam a tensão muscular do rosto cotidiano, apático ou trágico. A convulsão da nossa máscara social diária pelo riso resulta na percepção do modus operandi da máquina lógica que, lenta e inexoravelmente, nos torna avessos ao prazer do acaso que governa a realidade. Seja o riso comedido ou a gargalhada às escâncaras, trata-se sempre do desmonte da ordem tranquilizadora das idéias e dos valores, dos comportamentos e das crenças. Daí talvez o caráter um tanto sacrílego da comédia: um insulto aos deuses instituídos, um desafio aos homens respeitáveis e bem-postos.
Tais breves considerações acerca do riso, rascunhadas por um espectador comum, embora privilegiado e cúmplice, ensejam apenas chamar a atenção do leitor para uma das muitas características da extensa obra do ator, diretor e dramaturgo José Luiz Ribeiro, cuja trajetória à frente do Centro de Estudos Teatrais Grupo Divulgação se confunde com a história de resistência e pioneirismo da cultura e da arte em Juiz de Fora nas últimas três ou quatro décadas. Refiro-me à obra de comediógrafo do autor juizforano, que encontra em Botanágua, sua montagem mais recente, um exemplo acabado da estratégia especular (no sentido verbal e substantivo) utilizada por José Luiz Ribeiro para desmontar a realidade brasileira cotidiana.
Ao modo da melhor tradição cômica, o autor elege a cena doméstica o universo minúsculo de uma família classe média baixa como espelho no qual abismar os espectadores para especularmos uma realidade que, por demasiado maiúscula e complexa, muitas vezes nos submete e paralisa.
Assim, na superfície deste espelho algo banal e imediatamente reconhecível nos defrontamos com o desmonte de uma família tipicamente juizforana e brasileira, a minha, a sua e pasmem! a do próprio autor e diretor. As referências pessoais e locais não devem ser entendidas, no entanto, no sentido do provinciano ou do ocasional. São antes estratégias utilizadas para facilitar o imediato estabelecimento do pacto de representação e, principalmente, para engendrar as gags que desmantelam em riso o nosso rosto pequeno-burguês, enquanto acompanhamos o desmoronamento da família em cena.
O local e o doméstico são apenas sintomas dos apagões ético, social, político, econômico e cultural que acossam a realidade brasileira contemporânea. Desmontando a família de todos e de cada um, Botanágua nos desafia a ultrapassar as iluminações midiáticas e o aço do neoliberalismo para, através do espelho e não sem dor, nos defrontarmos com a face trágica do Brasil atual, urdida em 500 anos de injustiça e corrupção. Num híbrido de Mário de Andrade e Charles Chaplin, José Luiz Ribeiro atualiza “os males do Brasil são”, sem nunca perder o lirismo e a ternura em relação àqueles que sabem a festa e o riso, ainda que à beira das trevas.
Como Era sempre 1° de abril e O príncipe rufião, apenas para citar dois exemplos, Botanágua opera no terreno indecidível, na região difícil e por isso a poucos dramaturgos franqueada entre a alegria e a dor, entre o cômico e o trágico, entre o lírico e o prosaico, entre os vivas e os pesares afinal, esta a cena brasileira. E José Luiz Ribeiro sabe vencer artifícios economicistas e logros midiáticos para trazer ao proscênio e colocar sob as luzes que ainda nos restam as verdades intestinas e as grandezas que, embora inauditas ou subestimadas, nos fazem ser o povo brasileiro.  
 
Artigo publicado na revista-programa
do espetáculo teatral Botanágua, de José Luiz Ribeiro.
Montagem do Centro de Estudos Teatrais/Grupo Divulgação, 
1º semestre de 2001.
 


quarta-feira, 12 de setembro de 2012

José Luiz Ribeiro, dramaturgo [I]



 Dois textos em homenagem à obra do homem de teatro
José Luiz Ribeiro

O último portal

 
Fernando Fiorese

A peça O último portal, montagem do Grupo Divulgação estreada no último dia 19 de outubro, poderia ter como epígrafe este verso de Virgílio (Eneida II, 369): “Plurima mortis imago” (“A morte em múltiplas formas”). Ao realizar uma versão livre do cult-movie do cineasta sueco Ingmar Bergman, O sétimo selo (Det Sjunde Inseglet, 1956), o dramaturgo, ator e diretor José Luiz Ribeiro nos oferece um resumo vigoroso das questões que mobilizam o fim do século XX.
A despeito da cronologia, um século não tem data para terminar. Por vezes, penetra com suas características a idade subsequente, como o século XIX prolongou-se século XX adentro para terminar apenas por volta da Primeira Guerra (1914-1918). Também o nosso século, cujo fim tem merecido tantas comemorações, agoniza mas não morre. E assim foi ao longo dos últimos 100 anos, a ponto de podermos perguntar: de quantas mortes um século precisa para, enfim, morrer?
Os paradoxos deste tempo terminal e interminável, as aporias desta idade que repetidas vezes exsurge de seus próprios escombros, as muitas danças da morte no século XX – eis algumas das questões que O último portal nos propõe sob a rubrica farsesca do medievo. Numa época em que mesmo os acontecimentos mais violentos e degradantes, mediatizados pelas tecnologias da imagem, adquirem uma aura de glamour e assepsia, a peça de José Luiz Ribeiro funciona como a contracena desta era de belas imagens, ainda quando registraram o terror nazi-fascista, a rosa de Hiroshima, as vítimas das ditaduras, os miseráveis do Terceiro Mundo...
Avessa ao cosmético e ao ilusionismo realista, a cena crua de O último portal nos coloca diante do espelho transtornado deste século que, dentre outras muitas tragédias, produziu a tradução concreta da letra do Apocalipse. Conforme a palavra latina imago, a imagem não é aqui mais que uma profusão de espectros, a legião de mortos do século. Tendo como guia a Enviada, na interpretação precisa de Márcia Falabella, os personagens atravessam a selva selvaggia do tempo presente rumo ao Julgamento Final, quando então desvelam-se os muitos passos da dança secular da Morte.
O pendor alegórico do dramaturgo faz de cada personagem um arquétipo das potências destrutivas da nossa época. A peste, o espírito bélico (Antonius, o cavaleiro/Leandro Boscato), o bovarismo (Lisa, a mulher do açougueiro/Marise Mendes), a intolerância (inquisidores e aldeãs) e a subserviência ao poder (João, o escudeiro/José Luiz Ribeiro, Ator/Júlio Andrade, Míriam, a mulher de Antonius/Rinara Souza) são apenas algumas das máscaras do extenso repertório que tornaram a Morte a figura dominante deste século que escolheu a guerra como cenário.
Trata-se de uma peça melancólica, como o século. Embora a figura de Maria (Cristina Braga), símbolo de esperança, na montagem do Grupo Divulgação o tom farsesco não consegue suavizar a máscara trágica do nosso tempo, quando já não é mais possível encontrar no Apocalipse a letra do Gênesis.  

Juiz de Fora, 19 de outubro de 2000

sábado, 8 de setembro de 2012

A morte ronda o cronista


FAMÍLIA FIORESE FURTADO, PIRAPETINGA, MINAS GERAIS, DEZEMBRO DE 1969

Fernando Fiorese

Todos estamos sujeitos às rondas da morte. E não digo dos avances das Parcas em direção ao nosso próprio corpo, trazendo nas mãos a tesoura que, de repente, interromperá o fio da vida; trazendo nos lábios o esgar cantado por Augusto dos Anjos. Nem poderia dizer da “Dama Branca” que assombrou a vida de Manuel Bandeira e, demudada em verso, transformou-se numa das mais vigorosas metáforas da lírica brasileira moderna. Bem poucos percebemos as rondas da própria morte, os seus caprichos físicos. Talvez como uma forma de ludibriá-la (ou, ao menos, adiá-la), nos recusamos a ouvir os seus passos velozes em direção ao nosso corpo vivo e transitório.
Mas chega um tempo em que os mortos começam a cumular os bolsos de nossa sobrecasaca. Pode-se cantar esses mortos, como fez Drummond e muitos outros. Assim, é ela, a morte, quem ludibria o nosso desejo de permanência, as nossas táticas de escondimento, para nos ensinar as suas máscaras na morte dos outros. Tudo principia pela morte vizinha, aquela que, por distante, emociona apenas momentaneamente, para ser logo conduzida aos porões da memória. Porque não consanguínea, trata-se de uma experiência muitas vezes menor, pois que a falta não dá à vista, não empresta ao nosso corpo a sensação de mutilamento.
Com a idade, a “indesejada das gentes” (ah, Bandeira, consola-me!) se avizinha mais e mais. Primos distantes, pais de amigos, ex-colegas de ginásio... O passo pode ser lento, mas não retrocede jamais. E amiudam as notícias que os vivos nos dão dela. Antes que possamos ter consciência, a morte nos serve o prato do dia. Resta-me, hoje, apenas a avó materna — à beira da morte no leito de um hospital. Não devo lamentar que morram, tive os meus avós e os degustei por longos anos. O avô materno, por exemplo, alcançou a casa dos 99. Foi-se em sono e em sonhos. Antes dele, avô paterno e avó materna, ambos octogenários ou quase. Não devo lamentar que morram; as mortes inesperadas, abruptas, jovens, acidentais talvez comportem dor maior.
Ao contrário, devo aprender a lição que minha avó materna, Dona Rosa, tentava nos ensinar com suas palavras secas e ríspidas como o Alentejo de onde vieram seus pais portugueses. “Não tenho medo da morte. Pensam que vou ficar pra semente?” – dizia ela, avó desde sempre, como decerto são todas as avós e todos os avôs aos olhos aprendizes da criança. Assustava-me aquela afirmação do caráter finito da vida, cujo aprendizado dói porque não se dá pela teoria, mas pela prática de sobreviver aos que amamos. E esta mulher sobreviveu à morte prematura de um filho, até que um dia, como quem cansa de uma determinada atividade rotineira, decidiu deixar que a própria vida fosse interrompida. E foi-se, digna, serena, em paz – talvez sem saber-se desde sempre semente.
Enquanto aqui escrevo, também a vida de minha avó Rosita se esvai num leito de hospital da cidade de Pirapetinga. Outra semente se fecha em copas, lentamente, já ultrapassados os 94 anos de existência. Não é de se lamentar que, enfim, descanse o corpo maltratado pela lavra da terra, pelo parto dos filhos, pela intempérie das pequenas doenças. Lamento apenas as palavras que não poderei dizer-lhe, a mão que nunca mais poderei tocar, o rosto que não poderei contemplar ainda que pela última vez. Morre porque cansou-se da vida, porque decidiu enfim abandonar-se à dissolução, porque compreendeu a necessidade de cair no álbum de retratos e ser apenas a lembrança que alimenta os seus. E cá estou eu, egoísta, a lamentar sobretudo as lições de vida que a sua morte interrompe, como se se fechasse em ferros um livro precioso que nunca mais poderei folhear.  

Juiz de Fora, 15 de março de 2001

terça-feira, 4 de setembro de 2012

[Da série “Plano estratégico de Juiz de Fora”, 09]


Série de nove crônicas publicadas originalmente no jornal
Tribuna de Minas de maio a setembro de 2000,
por ocasião das comemorações dos 150 anos de Juiz de Fora.

COLÔNIA D. PEDRO II (1872)

 Olhar estrangeiro

Fernando Fiorese

A implantação da fábrica da Mercedes Benz em Juiz de Fora muito nos ensina acerca das relações que o poder público estabelece com a história e a cultura da cidade. As comunidades de São Pedro e Borboleta, que procuravam a duras penas manter os resquícios de sua origem germânica, de repente se tornaram referência obrigatória para a concretização dos interesses econômicos e políticos definidos pela prefeitura e pelo estado. Bairros que durante anos foram mantidos à margem das benesses da urbanização, de repente têm reconhecido o seu papel central na formação da cidade. De repente, o poder público reconhece as raízes alemãs de Juiz de Fora.
Mas onde estava a municipalidade enquanto importantes monumentos arquitetônicos destas comunidades eram demolidos? Onde estava a municipalidade enquanto, por absoluta falta de apoio, os grupos de dança folclórica tinham suas atividades interrompidas durante longos períodos? Onde estava a municipalidade enquanto documentos escritos e fotográficos eram devorados pelo tempo? Onde estava a municipalidade enquanto a memória e a dignidade das famílias se perdiam nas ruas sem infraestrutura básica? Onde estava a municipalidade enquanto, diante do avanço da cultura midiática, foram-se apequenando as manifestações genuínas destas comunidades? Onde está a municipalidade que não providencia o registro da história oral dos últimos imigrantes alemães, se ainda vivos?
Enquanto os discursos oficiais acerca do Plano Estratégico da Prefeitura Municipal nos informam que assim Juiz de Fora se coloca ao lado das cidades do Primeiro Mundo, esquecem-se de dizer que nestas a questão da identidade histórica e cultural das comunidades há muito tem merecido investimentos maciços. São cidades onde cada habitante se reconhece, porque o poder público soube respeitar as diferenças culturais, preservar o patrimônio histórico, democratizar o acesso aos bens e serviços urbanos, acolher as diversas heranças dos povos que as fundaram.
A identidade histórica e cultural das comunidades locais não pode estar subordinada aos objetivos econômicos e políticos dos detentores do poder, sob pena de, assim que tais interesses se realizem, as referências que fundam e singularizam a cidade serem diluídas ou folclorizadas – quando não conduzidas à posição marginal que ocupavam originalmente. O resgate e a preservação da nossa memória, como fundamento da construção da identidade cultural de Juiz de Fora, não podem ficar à mercê de circunstâncias tão fortuitas e casuais quanto a implantação de uma empresa estrangeira.
Também a valorização de nossas raízes italiana, portuguesa, síria, africana, espanhola e libanesa dependerá do advento de interesses em torno de investimentos externos? Então, que no tal Plano Estratégico seja prevista a atração de empresas desses países. Talvez assim, auxiliados pelo olhar estrangeiro, as instituições públicas e privadas de Juiz de Fora sejam capazes de reconhecer a cidade onde estão localizadas, a face dos habitantes que as sustentam e justificam.

CERVEJARIA  GERMANIA,  ÁLBUM  DO  MUNICÍPIO  DE  JUIZ  DE  FORA  (ALBINO  ESTEVES,  1915)  Arquivo de Marcelo Lemos

domingo, 2 de setembro de 2012

[Da série “Plano estratégico de Juiz de Fora”, 08]


Série de nove crônicas publicadas originalmente no jornal
Tribuna de Minas de maio a setembro de 2000,
por ocasião das comemorações dos 150 anos de Juiz de Fora.

PUNKS NAS PROXIMIDADES DO BAR REDENTOR, RUA ESPÍRITO SANTO COM AVENIDA RIO BRANCO (FOTO DE HUMBERTO NICOLINE, AGOSTO DE 1983)
 

 Memórias apócrifas

Fernando Fiorese

Lembro-me das matinês de domingo no Cine Pálace, com refrigerante e pipoca.
Lembro-me dos bondes, de quando os ônibus tinha nomes e não números, e eu ia para o Colégio João XXIII no Alvorada.
Lembro-me das famílias nas galerias do centro, a ver vitrines para esquecer que era domingo.
Lembro-me de um mendigo com a dignidade dos clochards parisienses na esquina da Batista com a Independência.
Lembro-me dos hippies no Parque Halfeld e dos punks nas proximidades do Bar Redentor.
Lembro-me da demolição do Stella Matutina, da Halfeld antes do Calçadão, da avenida Rio Branco antes do Mello Reis.
Lembro-me da primeira e da última sessão do Cine Paraíso, do Braseiro, do Bebel, do Danúbio Azul, do Hotel Mauá, do Bar Brasil, da Henrique Vaz.
Lembro-me de um crepúsculo na Praça do Cruzeiro e de outro ainda, descrito por um amigo, na margem esquerda do Paraibuna.
Lembro-me dos Domingos Culturais e dos sábados com Som Aberto no campus da Universidade.
Lembro-me do comício das Diretas-Já na Praça da Estação, da passeata pelo tombamento da Fábrica Bernardo Mascarenhas, dos varais de poesia em frente ao Cine-Theatro Central, da expulsão do Grupo Tá na Rua, das greves estudantis.
Lembro-me do suplemento literário do Diário Mercantil e da expectativa em torno do primeiro número da Tribuna de Minas.
Lembro-me da exibição de filmes no Anfiteatro João Carriço, de um Festival Glauber Rocha no Cine São Luiz, das semanas culturais da Academia e do Magister, da Livraria Espaço Cultural, do Bar do DCE.
Não são apenas minhas estas pequenas memórias. Em nenhum dos acontecimentos evocados figurei como protagonista, em alguns poucos exerci um papel secundário, casual; na maioria, fui um observador atento, um ouvinte contumaz, um leitor empenhado. Na verdade, minha vida civil começou muito tardiamente. Tenho a memória comum a todos os comuns, não a dos grandes homens, dos grandes feitos, que precisam ser gravados nas placas dos logradouros para que não caiam no esquecimento.
Em algumas cidades brasileiras, com o apoio de instituições públicas e privadas, essas memórias miúdas são transformadas em livros, álbuns de fotografia, peças de teatro, obras plásticas... São municípios que compreenderam que a cultura e a arte são fundamentais na constituição de uma imagem da cidade, a qual, quando bem elaborada e acolhida pelos cidadãos, funciona como fator de atração de eventos, recursos e turistas. Trata-se de um investimento no imaginário, de uma estratégia de visibilidade que conforma a visão que, tanto os seus habitantes quanto os estrangeiros, têm da cidade.