quinta-feira, 20 de setembro de 2012

[Prefácio para livro de Júlio Polidoro]



OUTRO SOL (POEMAS, 2004), DE JÚLIO POLIDORO
  
Fragmentos desentranhados da lírica de Júlio Polidoro
ou
Circunvoluções em torno de Outro sol

Fernando Fiorese

1a

Os teóricos devem à literatura, salvo engano, um estudo minucioso acerca das circunstâncias que determinam se torne inédito ou bissexto um escritor, um poeta. Tal estudo muito contribuiria para a compreensão do desejo de Kafka, assinalado por Blanchot, “de desaparecer, discretamente, como um enigma que quer escapar do olhar”. Talvez pudesse explicar também o contraponto entre o prolífico prosador Pedro e o parcimonioso poeta Nava. Para este estudo, não tenho mais que uma epígrafe extraída dos fragmentos de Heráclito:

Como alguém poderia manter-se encoberto face ao que nunca se deita?

1b

Mesmo quando se alcança a higiene da metafísica cristã, a obra dos deuses resta como paradigma e horizonte das operações humanas. E o livro, lugar criado pela palavra, permanece um ersatz menor do Livro, brutta copia do Lógos originário, caricatura do cosmos engendrado por mãos imortais. E se a obra se dá em dispersão, alheia a qualquer projeto ou cálculo, uma vez mais e ainda se impõe o pensar do Skoitenós grego:

De coisas lançadas ao acaso, o arranjo mais belo, o cosmos.

2

Em muitos sentidos, os fragmentos citados se prestam ao avizinhar-se da obra de Júlio Polidoro, coligida neste volume. Antes de tudo, pelo aspecto fragmentário e casual com que o poeta a foi construindo, sempre tensionada entre as tentações do inédito e a dispersão do bissexto. Como dormisse longos sonos, como se fizesse de e nos lapsos, como perseguisse um mapa secreto ou aleatório, como indecidível entre a reta e a curva.

2a

Como dormisse longos sonos, sem jamais se deitar, a poesia de Júlio Polidoro exsurge ao acaso. Afora os textos dispersos em jornais, revistas, antologias e coletâneas, Treze poemas essenciais (1979), Pequenos assaltos (1990) e Orla dos signos (2001) são as marcas visíveis desta travessia pontuada de lacunas temporais demasiado extensas. E ainda quando o poeta se empenha em ordenar a dispersão – como em Orla dos signos, no qual publica na íntegra os livros anteriores e antologia dois outros inéditos –, resiste a vis fragmentária e casual da obra em operação. Talvez porque nada possa o autor contra as linhas de força que aciona e o enredam.

2b

Como se fizesse de e nos lapsos, desta obra pouco nos dizem as datas com que o poeta rubrica cada um dos oito títulos aqui reunidos, inéditos em sua maioria. Mas, se não realiza o fantasmático desejo de ordenação – mesmo porque realizá-lo seria trair o acaso como motor da sua escrita –, Júlio Polidoro nos oferece em Outro sol o lugar único que o verter múltiplo desta lírica tanto buscou e merecia.

2c

Como perseguisse um mapa secreto ou aleatório: assim o leitor deste livro de livros, no qual proliferam poemas sem título ou apenas numerados, sonetos e formas brevíssimas, a assinalar o jogo em que o poeta o dispõe e propõe. Pois esta reunião é um puzzle que se vai armando – parece que lhe faltam peças, mas estas apenas se escondem entre o cúmulo de fragmentos, se multiplicam como num mosaico de espelhos.

2d

Como indecidível entre a reta e a curva, pode-se ler Outro sol, pois algumas seções ou livros inteiros se armam como fossem um único e mesmo poema, costurado pelo desdobrar das pequenas diferenças de temas, imagens e palavras; enquanto outras partes e títulos mal se alinhavam – e então sobram pontas nestes fragmentos crescidos uns de costas para os outros. E assim, entre o afeto e o desacordo, a lírica de Júlio Polidoro ora se entrega, comum e amorosa, ora se recusa ao diálogo, obscura, inamistosa.

3

Tal como entre os pensadores originários, aqui o mistério se diz músculo e mística, número e desmesura, alumbramento e medo. Tal como entre os fragmentos daqueles, em Outro sol não há modo de demarcar núcleos temáticos, de rubricar traços de estilo, de assinalar uma progressão poética, de disciplinar a palavra. Mas, para esta reunião, convergem os mesmos elementos primevos (terra, água, fogo, ar), os mesmos deuses, as mesmas imagens arquetípicas, as mesmas questões inelutáveis que, desde sempre, alimentam o thaumázem do poeta e do pensador. E não se trata de limite ou restrição, pois mesmo “a história universal”, nos diz Borges, “talvez seja a história da diferente entonação de algumas metáforas”. Ao leitor, o tom e o tonos que Júlio Polidoro empresta a essas metáforas.

Juiz de Fora, véspera de primavera, 2004

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