sexta-feira, 17 de abril de 2015

FACE AO QUE NUNCA SE DEITA


[Leia as micronarrativas de
Breviário 
nas postagens abaixo.]

Prefácio do livro Corpo arquivode Paulo Andrade
(São Paulo: Patuá, 2014)

Fernando Fiorese

Le corps touche à tout du bout secret de ses doigts osseux.
E tout finit par faire corps...
(O corpo toca tudo com a ponta secreta de seus dedos ossudos.
E tudo acaba por fazer corpo ...)
Jean-Luc Nancy

Mesmo ao prefaciador, em geral, o poeta não dá a conhecer o desalinho caótico ou a ordem cirúrgica de sua oficina, mantendo sob grossos tapumes o canteiro acidentado ou bem medido da obra e seus processos. E quando alcança as mãos do leitor, o livro já não dispõe do sujo e das aparas que ficam dos versos, ainda quando se possa adivinhar neles os caminhos do serrote, os golpes do martelo e um ou outro prego embutidos. Seja por pudor ou truque de elegância, técnica de higiene ou soberba, o escondimento dos andares e desandares da criação é um dos muitos demônios que assombram o ofício lírico, uma obsessão por vezes mudada em ars poetica, tal a lição de Olavo Bilac em “A um poeta”:

Longe do estéril turbilhão da rua,
Beneditino, escreve! No aconchego
Do claustro, no silêncio e no sossego,
Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!

Mas que na forma se disfarce o emprego
Do esforço; e a trama viva se construa
De tal modo, que a imagem fique nua,
Rica, mas sóbria, como um templo grego.

Não se mostre na fábrica o suplício
Do mestre. E, natural, o efeito agrade,
Sem lembrar os andaimes do edifício:

Porque a Beleza, gêmea da Verdade,
Arte pura, inimiga do artifício,
É a força e a graça na simplicidade.

Outras vezes, para ficar em dois casos apenas, esta mesma neurose se torna questão, através da qual algo dos intestinos da empresa criadora é desvelado, ainda que, como nestas duas estrofes do poeta-crítico João Cabral de Melo Neto, a partir de uma “Exceção: Bernanos, que se dizia escritor de sala de jantar”:

Por que é o mesmo o pudor
de escrever e defecar?
Não há o pudor de comer,
de beber, de incorporar,
e em geral tem mais pudor
quem pede do que quem dá.
Então por que quem escreve,
se escrever é afinal dar,
evita gente por perto
e procura se isolar.

Escrever é estar no extremo
de si mesmo, e quem está
assim se exercendo nessa
nudez, a mais nua que há,
tem pudor de que outros vejam
o que deve haver de esgar,
de tiques, de gestos falhos,
de pouco espetacular
na torta visão de uma alma
no pleno estertor de criar.

[...]

Além das delícias da digressão – esse demônio menor que confere certo sabor à escrita da prosa crítica –, as considerações precedentes se justificam pela circunstância rara do prefaciador ter conhecido uma das versões anteriores deste Corpo arquivo, de Paulo Andrade, versão sob outro título e para sempre esconsa e perdida, exceto, talvez, para algum pertinaz e afortunado especialista em crítica genética. Pois não pretendo cometer a indelicadeza de segredar qualquer tique ou gesto falho que tenha surpreendido entre os dois estados da obra. Muito menos me ocorreria a indiscrição de apontar as marcas dos andaimes e outros artifícios que sustentaram e moveram a reescrita, realizada sempre com a estranha alegria e o extremo cuidado de quem constrói para a habitação do outro, com a angústia e a urgência absurda de quem sabe que o fim da obra é também uma morte.  
Ajuntado à leitura do primeiro livro do autor – Inventários (2002), do qual poemas migraram para este volume – e a algumas poucas palavras do próprio poeta acerca dos bastidores do processo de reescrita, tal acidente se oferece como incipit e motor para a abordagem sucinta da poética de Paulo Andrade. Grosso modo, trata-se de uma poética que se quer e se faz o que a obra é, ou seja, uma construção em perpetuum mobile, nunca acabada e de nenhum modo pessoal e intransferível, pois urdida pelas vozes de vários e pelo plural das circunstâncias. Em contraposição ao que sugerimos nos parágrafos de abertura, ao menos em parte e desde o título, epígrafes escolhidas e a “Advertência” do autor, o corpus deste livro não faz segredo absoluto da matéria e dos artifícios que se desdobram na costura de suas seis seções, a saber: “Arquivo do corpo”, “Corpos dramáticos”, “Corpos etéreos”, “Corpos ex/cêntricos”, “Câmera escura” e “Venenos mínimos”.
Desculpando-me com o poeta por esta única indiscrição, devo revelar que, na primeira versão que me foi enviada, o livro se intitulava Corpo, linguagem. E não há nada de aleatório, gratuito ou mero capricho na mudança para Corpo arquivo, ainda que com a manutenção do título inicial num dos poemas. A priori, tanto a supressão da vírgula, na medida em que transtorna a relação sintática entre os vocábulos e embaralha a semântica dos mesmos, quanto a substituição de linguagem por arquivo, correspondendo a um “rebaixamento” do conceitual para o material, rubricam o empenho de Paulo Andrade no sentido de colocar a nu os andaimes da obra, ou seja, as questões que o mobilizam e o colocam à altura do diálogo com a matéria bruta do seu tempo. Tais questões, desveladas em parte pelos títulos das seções e pelas epígrafes de Armando Freitas Filho, Salgado Maranhão e Murilo Mendes, encontram-se condensadas por inteiro no título, como fora este um minúsculo cosmos a ser expandido conforme o pulsar dos poemas.

O autor...

Para ser breve como exige um prefácio digno deste nome, diria que a linha de força que aciona e alinhava o repertório das questões desdobradas ao longo deste livro refere-se à dualidade entre physis e logos, que encontra no corpo o locus incommōdus no qual se dão suas cismas, seus cilícios, suas cifras, seus crimes. Tão originária e primeva quanto contemporânea, tal dualidade exsurge em tradução livre já no título da obra – corpo = physis; arquivo = logos –, enquanto os poemas surpreendem algumas das muitas figurações da crise do corpo, a começar pelas tantas perplexidades diante de seus “acordes dissonantes”, de “seu ritmo assimétrico, suas harmonias / politonais” (“A sagração da primavera”). Nada disciplina a physis, o “corpo em constante devir”, porque “é da natureza da natureza ser / incivilizada, subversiva”, porque sempre “esperando / o abraço do imponderável” (Idem). Carne que “ainda persiste em ser atlas” (“Arquivo”) [1], a physis resiste às forças legislativas do logos – “Circuitos entram em curto / e uma guerra se instaura” (Idem) –, e nesta resistência toma corpo o poema, arquivo-logos transtornado pelo corpo próprio e pelas “linhas e dobras” (“Corpo, linguagem”) do corpo do outro. Assim, no desandar de suas andanças, as metáforas [2] e outras textualizações do corpo são a prova cabal dos modos como a physis desvia de ser apenas uma “prosaica / coleção de inventários” (“Arquivo”), fazendo do poema o seu campo de batalha – não para aniquilar o logos, mas para estar à altura deste outro, de sua diferença, à altura do devir que somos, à altura do pólemos desvelado por Heráclito: “De todas as coisas a guerra é pai, de todas as coisas é senhor...” (fr. 53).
Igual embate entre o corpo selvagem e o corpo civilizado encontramos nos poemas “Corpo, linguagem”, “Canto de sereia” e “Entreato”. Afinal, enquanto ars erotica, o “amor natural” é também repto entre corpos, arquivo de energias vitais e de petites morts, questão em aberto, irrespondível:

enredados no tempo
vivemos sem compreender
se estamos aqui para
entender ou para viver
(“Entreato”).

E ainda que prevaleça a lição da “Arte de amar”, de Manuel Bandeira – “Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo. // Porque os corpos se entendem, mas as almas não” –, a problemática do corpo não arrefece. Ao contrário, o tempo lhe acrescenta mais e mais clausuras e horizontes, higienes e pecados, naturas e artifícios, monstros e ideais. A ponto de encarnar as palavras de Walter Benjamin – “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie” –, de mudar o ideal em monstruosidade, como nas práticas contemporâneas do “Fitness”:

Por isso corre para expulsar-se
para expulsá-lo de si aquele corpo
(que não lhe pertence?) ele não sabe
Mas ela odeia suas carências e subversões

Obteve sucesso em seu plano de fuga
hoje habita um outro desconhecido corpo

Contra a desaparição do corpo na cena contemporânea pela ascese (bulimia, anorexia, obesidade) ou pela assepsia (maquilagem, cirurgia estética, próteses) de seus abismos, tormentas, tensões, vácuos e enigmas, o poeta investe na multiplicação de corpos. De um lado, a “escritura inscrita / entre a vida e a morte” (“O polvo e seus tentáculos”) empresta corpo a um plural de dramatis personae de poetas e artistas plásticos (Torquato Neto, Lautréamont, Cabelo, Jack Johnson e William Turner); de outro, nos “corpos etéreos” – porque plásticos, fluidos, alheios, metamórficos – de gatos, beija-flores, abelhas e caranguejos, experimenta-se a mais radical alteridade, o devir animal. Ao inumano acrescenta-se também o desumano dos “Corpos ex/cêntricos”, marginais e marginalizados, proliferando invisíveis na vertigem famélica e artificiosa das metrópoles (“Sem-abrigo”, “Moto-boy” e “Natureza morta”). Na carne e no fluxo da linguagem, Paulo Andrade desarquiva uma demasia de corpos – estranhos, belos, eróticos, tóxicos, chagados, enigmáticos – para que o corpo seja o que é, monumento de barbárie e cultura, corpus corporum. Porque corpo só existe no plural, no contágio, na acoplagem.

... e a obra

E deste corpo a corpo com o exterior e com o outro exsurge a diferença do corpo próprio do poeta, a “Câmera escura” e singular da memória, da biografia. De “Genealogia da asma” ao poema em prosa “Por isso não se confunde...”, abre-se o arquivo da infância agreste e sem mitos. Poucos autores terão apresentado um retrato tão cru e cruel da infância, bordada de muitas mortes, faltas, acidentes, asfixias, dores, negativas e assombramentos:

Nem sempre a realidade
é uma ilusão de ótica
nem a escrita converte
em matéria o ato imodificável
o selvagem da imagem que
sobrevive oculto entre ruínas
e escombros.

Não há escavação arqueológica
que remova tais vestígios.
Há rebeliões no sótão que irrompem
à revelia os arquivos ressoando
assombramentos na câmera escura.
(“Assombramentos”)
  
Na memória dos desalinhos da linhagem e dos paradoxos e paroxismos da criança, o poeta rubrica a diferença do corpo de si mesmo. Daí que o corpo do adulto (em trânsito) possa olhar e dizer o corpo do infans (imóvel e mudo): “naquela varanda onde crianças / brincam com o barro estou // os pés fincados” (“Caderno de viagem”). Corpos de prova, corpos em prova, errantes e atentos aos incêndios da poesia, à circulação dos “Venenos mínimos”, à “Errata” que se impõe:

são dois corpos mirando
não entre si
mas o ponto que converge
no futuro

Os corpos do eu e do outro, do menino e do homem, de Paulo Andrade e de Sebastião Uchoa Leite – tantos corpos e a mesma questão:

o que fazer com tantos
lapsos, atos falhos,
esquecimentos
equívocos
(“Para Sebastião Uchoa Leite”)                             

Porque são eles, esses tantos corpos, disjecta membra sob as trevas do nosso tempo. E embora o excesso de luzes ameace recalcar a physis em pura imagem, não se arreda a questão originária do logos heraclítico – “Como alguém poderia manter-se encoberto face ao que nunca se deita?” (fr. 16). Não por acaso, nas forças de fratura e nas linhas de sutura dos textos de Paulo Andrade ecoam as palavras de Giorgio Agamben: “O poeta, enquanto contemporâneo, é essa fratura, é aquilo que impede o tempo de compor-se e, ao mesmo tempo, o sangue que deve suturar a quebra”. Trata-se de manter a descoberto a tensão indecidível entre physis e logos para que nunca se deite o corpo do texto, do tempo e do ser.

Juiz de Fora, 20 de abril de 2014.

Notas

[1] Mesmo a inicial minúscula não permite esquecer o titã grego, representação mítica das forças do caos e da desordem submetidas e disciplinadas por Zeus, conforme a Teogonia, de Hesíodo: “Atlas, sustém o amplo céu sob cruel coerção / nos confins da Terra ante as Hespérides cantoras, / de pé, com a cabeça e infatigáveis braços: / este destino o sábio Zeus atribuiu-lhe” (v. 517-520).
[2] Do grego, metá (= “no meio de, entre; atrás, em seguida, depois; com, de acordo com, segundo; durante”) + phérō (= “levar, carregar, transportar, trazer; suportar, encontrar; resistir; arrebatar”).

Post scriptum:
Corpo arquivo, de Paulo Andrade, pode ser adquirido no site da Editora Patuá: