sexta-feira, 15 de maio de 2015

CHERUBINO AL DI LÀ DEL TEMPO PREDATORE: MEMÓRIAS DE AMOR E AMIZADE NA LÍRICA DE ANNALISA CIMA

Leia as micronarrativas
nas postagens abaixo.


Por onde começar a publicação da obra de uma poeta italiana que, inaugurada em 1969, permaneceria inédita no Brasil até 2002? No sentido cronológico, do livro de estréia à produção mais recente, de modo a oferecer ao leitor as diversas estações da viagem lírica empreendida? Ou acolhendo um percurso à rebours, conforme a prática editorial adotada em antologias e reuniões poéticas? Como seduzir uma editora para tal empreitada, quando em geral o mercado se mostra tão avesso à poesia? De que modo apresentar uma obra já extensa através de um único título, sem com isso incorrer nos riscos próprios a qualquer procedimento metonímico?
Tais questões nos assaltam diante da publicação de Hipóteses de amor (Ipotesi d’amore), de Annalisa Cima, pela Ateliê Editorial. E talvez tenham mesmo assaltado Maria Eugenia Boaventura e Ivo Barroso, organizadores do livro que, publicado na Itália em 1984, mereceu uma bela e cuidada edição brasileira, à altura da obra da poeta milanesa e da tradução iniciada por Alexandre Eulalio (1932-1988) em 1985 e completada por Ivo Barroso. Tal como os 36 poemas do volume, escritos sob o signo do amor e da amizade, também esta edição bilíngue parece-nos ter como motor estes mesmos sentimentos, pois trata-se de uma ação entre amigos, no sentido mais belo, nobre e amorável que se possa encontrar para a expressão.
Não nos cumpre falar da amizade de Annalisa Cima e Alexandre Eulalio ou da homenagem que Maria Eugenia Boaventura e Ivo Barroso prestam àquele crítico, tradutor e poeta, completando a sua obra interrompida. Hipóteses de amor nos diz já na sua estrutura dos modos plurais que Eros empregou para presentificar-se e engendrar o volume. Desde o prefácio até as fotos e cartas de Eulalio a Cima que emolduram a obra, passando pelo posfácio escrito pela poeta especialmente para a edição brasileira – e que se encerra com um poema dedicado ao amigo e tradutor –, a escritura mesma dos textos exigia a forma física que o livro soube encontrar.
E saberá encontrar também o leitor a forma de se aproximar da obra de Annalisa Cima através de Hipóteses de amor, bastando recorrer aos poemas da primeira parte para a lição acerca dos modos deste avizinhar-se. Sob o título “A Cherubino”, os doze textos iniciais são, conforme as palavras da própria autora no posfácio, “um solilóquio do poeta, solilóquio que tende a identificar a miragem, o sortilégio do amor por si mesmo e pelo outro, numa duplicidade que é espelhamento” (“Posfácio”).

Capas das edições italiana e brasileira.

Figurações de Eros

Os sentidos paradoxais, ambíguos e incertos do personagem-signo Cherubino se desvelam como as muitas figurações de Eros que, nos interstícios do texto poético de Annalisa Cima, insinuam-se como memória do desejo carnal e dos diálogos intelectuais, como o amor que ousa dizer os seus múltiplos nomes, as suas numerosas hipóteses. Assim, através do arranjo entre o karibu babilônico, o kerub da tradição hebraica e o Cherubino mozartiano, Eros exsurge para domar il tempo predatore (título de uma outra recolha da poeta, 1997) e textualizar a memória dos encontros da autora com o amor-Marte e a amizade-Vênus.
Tudo principia pelo que promete a aproximação alada no poema 1. da seção “A Cherubino”:

Talvez analogias naturais
dançam alegria
talvez descorado tédio
do engano
vão
hipóteses de amor.

Talvez bastasse
uma lâmina
para trinchar pensares
futilidade, e dar-nos
em fundível encontro
compacteza
temperatura
gana.

As sortes da guerra
são incertas.
Vencerei: Vênus
a mim dá reinos
que Marte doa a outros.

Ao modo de prólogo e índice remissivo, o texto inaugural da obra tanto anuncia o avizinhar-se do puer alatus, a miragem deste ser encantador, quanto antecipa o jogo de Eros, em suas muitas partidas desdobrado nos textos posteriores. Neste sentido, os versos iniciais referem as várias e dúbias gêneses do deus grego, incluindo as “analogias naturais” que o fazem figurar entre os quatro elementos primevos da cosmogonia helênica, juntamente com Caos, Terra e Tártaro (cf. Hesíodo, Teogonia, v. 116-122), ou que atribuem o seu nascimento a um “ovo sem germe” produzido pela Noite (cf. Aristófanes, Os pássaros, v. 693 ss.). Tais referências não descuram da participação de Eros, em parelha com Desejo (Hímeros), no séquito de Afrodite (a Vênus romana), deusa com a qual partilha, além da beleza, outras das dádivas que, ainda segundo Hesíodo, lhe couberam “entre homens e Deuses imortais”: “as conversas de moças, os sorrisos, os enganos, o doce gozo, o amor e a meiguice” (Teogonia, v. 204-206).
E prosseguem as alusões às variantes do mito de Eros, desde o episódio da lança por ele utilizada para despertar Psiquê – “Talvez bastasse / uma lâmina / para trinchar pensares” – até o “descorado tédio” que o lógos da metafísica de Platão lhe empresta ao inaugurar a oposição entre o “amor natural” e o “amor intelectual”, com privilégio deste último. Tédio este que a filosofia cristã tratou de acentuar através do repúdio a Eros como amor concupiscientiae ou vulgaris e da eleição da caritas como sinonímia do amor divinus, até a quase completa domesticação daquela criança nua, zombeteira, patética e perigosa pelo pequeno e insosso deus Amor da cristandade.
Não por acaso, as referências avançam no sentido de surpreender e acionar o Eros adormecido, domado ou dissimulado nas brechas da tradição artístico-literária do Ocidente. De forma que os atributos do deus – abrupto, alegre, dúbio, fútil, lascivo, perigoso, bélico etc. – encontram fons et origo também (e dentre outros) em Dante Alighieri – “... quando m’apparve Amor subitamente, / cui essenza membrar mi dà orrore. // Allegro mi sembrava Amor tenendo / meo core in mano” (Vita nuova, III, v. 11-12); em Torquato Tasso – “Amore, in qual scola, / da qual mastro s’apprende / la tua sì lunga e dubbia arte d’amare?” (Aminta, ato II, cena III); “... ma il suo scherzar è pieno / di periglio e di danno. [...] Facilmente s’adira / facilmente si placa; e nel suo viso / vedi quasi in un punto / e le lagrime e ’l riso” (Idem, epílogo); em Pierre de Ronsard – “Amour et Mars sont presque d’une sorte: L’un en plein jour, l’autre combat de nuit” (Les amours de Cassandre, soneto CLXXX); e no libreto de Lorenzo da Ponte para Le nozze di Figaroopera buffa de Wolfgand Amadeus Mozart – “Non so più cosa son, cosa faccio, / or di foco, ora sono di ghiaccio” (Le nozze di Figaro, cena V, ária de Cherubino).
Serão estas referências, predicados e imagens desdobradas nos demais textos da seção “A Cherubino” como simulação de uma narrativa – sempre breve, lacunar e avessa a qualquer cronologia – dos embates com Eros kallistos. Assim, já no poema 2, ecoa a voz tomista e aristotélica de Dante – “Amante amado amando-te” –, enquanto no 3 súbito irrompe Cherubino – “Com boca de menino” –, então confundido com Aminta, personagem enamorado da citada favola pastorale de Torquato Tasso, para rubricar o “amor pien di gioia e di salute” (Aminta, ato I, cena I). Contrapondo-se ao débil Amor cristão, o Cherubino com que monologa Annalisa Cima tem por epíteto “remédio ao tédio” (poema 6), destinado que está às “horas do proibido” e às funções guerreiras de Marte, metaforicamente assinaladas no poema 7 com uma citação em latim da comédia A corda, de Plauto: “rem acu tetigisti” (“tocar a coisa com a agulha”).         
O que “começou como jogo” (poema 4) exigirá o empenho de todo o corpo, com suas alegrias e dores. Corpo que se nomeia em boca, pupila, dentes, mão, costas. E nomeando-se, mais se dá do que se recusa: “tenho lágrimas nos olhos / e sal no meu palato” (poema 2); “imprevisto chamado / de olhos que me fazem / empalidecer” (poema 4); “Movo os passos / para sutis reencontros” (poema 9). Porque se trata do corpo erótico, cujos atributos foram antes anunciados no poema 1: “compacteza / temperatura / gana”. De forma que este corpo que apela a Cherubino para o “fundível encontro” (poema 1) – ersatz da hierogamia originária engendrada pela potência unificadora de Eros – desvela a força elementar que domina e reúne amante e amada, como demonstram os excertos dos poemas 2, 4 e 8 que, respectivamente, transcrevemos:

mas não há hiato entre nós
que somos
calor calado no viver deixando
e quando te olho
vejo que és o sol

......................................................

Ao alado peço
que não feche o jogo
conheço os antigos sinais de fogo

......................................................

Agora o indefeso pensar
tem o sofrido da febre

Inflamados pelo fogo de Eros, os corpos se entregam às “sortes da guerra” (poema 1) – “Há sempre estações de pranto / e estações em que o canto dos dias / muda o passado congelado” (poema 2) –, pois o jogo de ousadias de Cherubino acaba por vencer a palidez e as resistências da amada: “suave depor o rigor / a tempo e hora” (poema 4). Não sem feridas, amarguras, febres, lonjuras, sinais de ameaça e abandonos, os amantes elaboram as “mesuras do dar, do querer (poema 8)”, encontrando juntos o devir que apenas os corpos amorosos realizam:

Chegaste
e a tua mão desperta motivos
dançando sobre declives divinos.
Gemes, e as paredes
ouvem o teu ardor.
Lisa, alissa, leve
ut, fenice, vale
reténs nunca e ainda,
pelas costas o cavaleiro
senta e devora.
(poema 12)

Visite o site de Annalisa Cima, http://annalisacima.com/homepage.htm.

Da amizade-Vênus

Enquanto a primeira seção de Hipóteses de amor nos apresenta as várias figurações de Eros, travestido num Cherubino que é o arranjo das muitas e dúbias manifestações daquele deus com os atributos do híbrido karibu babilônico (metade homem, metade animal) e do sedutor Cherubino mozartiano, os poemas reunidos sob o título “A outros” acrescenta a este personagem os caracteres do angélico kerub da tradição hebraica, símbolo da efusão de sabedoria. Pois, embora não seja menos caloroso o sol erótico que ilumina os familiares e amigos homenageados nesta segunda e última seção, é diversa a medida e o vigor amorosos desses diálogos que, ainda quando realizados post mortem, buscam “o desconhecido momento, de juntos reencontrarmos o tempo” (“A vovô Francesco”), “o emblema de um mudo lembrar-te” (“A S.”), de modo a fazer durar na memória os saberes destes outros querubins.
Nos poemas que dedica a Jorge Guillén, Eugenio Montale, Marianne Moore, Pier Paolo Pasolini, Ezra Pound, Giuseppe Ungaretti e Luchino Visconti, apenas para citar os mais conhecidos entre nós, Annalisa Cima deslinda o que permanece do alegre aprendizado humano e lírico com os “componentes de uma família utópica” (“Posfácio”). Nas palavras da autora, o fulcro destes textos “é a amizade como momento privilegiado: sentimento que redime o mundo de suas torpezas” (Idem), na medida em que nos permite vencer “a moribunda / presença do tempo” (“A Franco Fortini”) e conciliar “desejo e distância” (“A Marianne Moore”). De forma que a amizade-Vênus ensina e concede à palavra poética “o ouvir as nossas rimas / votadas ao não findar” (“A Giuseppe Ungaretti”). Mudar o outro em texto, dizer os amigos e traduzir suas lições é o mesmo que olhá-los “sem tempo nem lugar” (“A Luigi Fenga”). Trata-se de vencer os avanços da morte através da alegria de louvar com palavras amorosas, tal exemplifica o poema “A Cesare Segre”:

Alegria de louvar
o louvado amigo
que da linguagem
regula o pensar.

[...]

Urge continuar lado a lado
a palavra
porque nosso amor
nossa pátria.

Quando e apenas sob o signo de Eros, a palavra é penhor do encontro, seja ele amor ou amizade, seja com Vênus ou Marte, seja no tempo ou na eternidade.
  
CIMA, Annalisa. Hipóteses de amor. Trad. Alexandre Eulálio e Ivo Barroso. São Paulo: Ateliê, 2002.