sexta-feira, 14 de agosto de 2015

DEZ COISAS E MAIS UMA SOBRE A CARTA

Fernando Fiorese


1.

A carta é uma máquina perfeita. Nós é que, às vezes, emperramos a sua mecânica alada com palavras de açúcar ou veneno, de urgência ou etiqueta.

2.

Escrever uma carta é sem pausa. E continua sem nós por dias e semanas de distância, a letra lenta a procurar um par para a dança.

3.

Por estas mal traçadas linhas é um lugar-comum que deveria vir grafado no cabeçalho de toda carta digna deste nome. Como um preito ao escrever só e desarmado.

4.

Esperar uma carta é como estar doente do outro. Daí o ambiente infantil e hospitalar que domina e faz a casa arfar a horas contadas.

5.

Toda carta de amor, desde as dobras do envelope até as volutas da caligrafia, deve ter um estudado desleixo, como fosse o acaso comum de uma flor furtada ao jardim vizinho.

6.

Para quem sabe, receber uma carta muda o luto em secreta alegria. Mas abrir e ler exige atravessar outras muitas distâncias.

7.

Na sua elegante gramática, os verbos da carta são todos bitransitivos. Alguns fogem à regra: rasgar, unhar, amassar, extraviar, queimar, esconder, rasurar.

8.

No princípio é o envelope e tudo o que ele antecipa. Convém, no entanto, considerar que nódoas, rasuras e rasgos são, não raro, apenas nódoas, rasuras e rasgos. Também o perfume.

9.

Para ler uma carta, suspenda as trombetas do ordinário, guarde-se nas suas sete solidões, esteja inteiro nesta perigosa operação de armar e desarmar o horizonte. Para ler uma carta é preciso ter olhos, mãos, fígado, pulmões, sexo, rins, unhas – enfim, um corpo cabal.

10.

Na verdadeira carta – sempre manuscrita –, desvelam-se dor e alegria, gesto e afeto, vida e vigor. Trata-se de uma presença. Quando impressa, muda em correspondência – deselegância e vazio.

Mais uma

Somos os rituais que perdemos, como cartas à deriva na velocidade de um tempo que não sabe a espera nem a delicadeza de se dar num envelope.