Fernando Fiorese
1.
A carta é uma
máquina perfeita. Nós é que, às vezes, emperramos a sua mecânica alada com
palavras de açúcar ou veneno, de urgência ou etiqueta.
2.
Escrever uma
carta é sem pausa. E continua sem nós por dias e semanas de distância, a letra
lenta a procurar um par para a dança.
3.
Por estas mal traçadas linhas é um
lugar-comum que deveria vir grafado no cabeçalho de toda carta digna deste
nome. Como um preito ao escrever só e desarmado.
4.
Esperar uma
carta é como estar doente do outro. Daí o ambiente infantil e hospitalar que
domina e faz a casa arfar a horas contadas.
5.
Toda carta de
amor, desde as dobras do envelope até as volutas da caligrafia, deve ter um
estudado desleixo, como fosse o acaso comum de uma flor furtada ao jardim
vizinho.
6.
Para quem
sabe, receber uma carta muda o luto em secreta alegria. Mas abrir e ler exige
atravessar outras muitas distâncias.
7.
Na sua
elegante gramática, os verbos da carta são todos bitransitivos. Alguns fogem à
regra: rasgar, unhar, amassar, extraviar, queimar, esconder, rasurar.
8.
No princípio
é o envelope e tudo o que ele antecipa. Convém, no entanto, considerar que
nódoas, rasuras e rasgos são, não raro, apenas nódoas, rasuras e rasgos. Também
o perfume.
9.
Para ler uma
carta, suspenda as trombetas do ordinário, guarde-se nas suas sete solidões,
esteja inteiro nesta perigosa operação de armar e desarmar o horizonte. Para
ler uma carta é preciso ter olhos, mãos, fígado, pulmões, sexo, rins, unhas –
enfim, um corpo cabal.
10.
Na verdadeira
carta – sempre manuscrita –, desvelam-se dor e alegria, gesto e afeto, vida e
vigor. Trata-se de uma presença. Quando impressa, muda em correspondência –
deselegância e vazio.
Mais uma
Somos os
rituais que perdemos, como cartas à deriva na velocidade de um tempo que não
sabe a espera nem a delicadeza de se dar num envelope.