terça-feira, 15 de dezembro de 2015

QUASE DEZ COISAS QUE NÃO SEI ACERCA DA CRÔNICA

Fernando Fiorese

Para Teresa Neves,
Fernando Albuquerque e
José Geraldo Batista


I

Não sei se a crônica é um gênero literário ou textual. E esta minha ignorância literária e linguística faz da crônica uma questão que transtorna todo o saber-sabido – teorias, conceitos, definições – e aciona o pensar em direção a horizontes inéditos.

II

Não sei se o valor de uma crônica está em alcançar a pequena eternidade do livro ou na morte súbita junto com os acontecimentos que registra, se está em elevar-se do chão comum para os céus da lírica ou em baixar a poesia até a lama do prosaico.

III

Não sei se a crônica habita uma encruzilhada, uma fronteira ou o campo de batalha entre jornalismo e literatura. Porque tudo que tem de jornalismo beira o antijornalístico. Porque dança bêbada nos limites do campo literário, para além de quaisquer teorizações.

IV

Não sei se faz sentido desvelar na crônica, para regozijo dos exegetas, quaisquer índices de realidade, ficção, lirismo, biografia, quando todo o trabalho do texto é baralhar e traduzir, fraudar e instruir, entregar e iludir, cumular e subtrair – enfim, fazer cifra (em todos os sentidos verbais e substantivos deste vocábulo-enigma) da vida e seus possíveis.

V

Não sei qual a serventia de ordenar a crônica em tipos – lírica, humorística, filosófica, biográfica, narrativa, dialógica, descritiva, histórica, metalinguística etc. –, mas poderia inventar outros sem-número, dado o pendor que tenho para operações de cunho compilatório e enumerativo.

VI

Não sei se a crônica seria uma espécie de caçula de uma família que tem a Poesia como primogênita e o Conto como filho do meio, os três gerados pelo Mito e pela Música. Mesmo porque, a prole deste casal é bem mais numerosa, sem contar as relações extraconjugais. Talvez a crônica seja apenas um rebento bastardo.

VII

Não sei se a crônica exige de seus autores o corpo aventureiro da juventude ou o espírito aguçado da madureza. De qualquer forma, a crônica brasileira se alimentou tanto das diatribes políticas e peripécias amorosas do jovem correspondente de guerra Rubem Braga quanto do senso grave, cismarento e meticuloso do velho Carlos Drummond de Andrade, observador resguardado no escritório; tanto da pornografia angelical (logo, adolescente) de Nélson Rodrigues quanto da sua contrapartida metafísica, moral e etária, Otto Lara Resende.

VIII

Não sei se a crônica, ao falar do local e do circunstancial, aspira ao universal e ao eterno. Porque a crônica é tão chã, tão familiar, tão nossa que lhe basta dar conta de uma rua, de um bairro, de uma cidade, dos acontecimentos e dos personagens que, mal alcançam a esquina, já se ressentem do clima e do idioma de terra estrangeira. Em verdade, a crônica é um animal doméstico. Sem pedigree.

IX

Não sei se a crônica deseja ou merece a leitura demorada e inteira do especialista – óculos de grau na ponta do nariz, mãos afeitas à escrita de notas marginais. Talvez a crônica espere não mais que o olhar breve, oblíquo e distraído que se dedica às bulas de remédio e aos manuais de instrução.

Juiz de Fora, vésperas do outono, 2015