Fernando Fiorese
Para Teresa Neves,
Fernando Albuquerque e
José Geraldo Batista
I
Não sei se a crônica é um gênero
literário ou textual. E esta minha ignorância literária e linguística faz da
crônica uma questão que transtorna todo o saber-sabido – teorias, conceitos,
definições – e aciona o pensar em direção a horizontes inéditos.
II
Não sei se o valor de uma crônica está
em alcançar a pequena eternidade do livro ou na morte súbita junto com os
acontecimentos que registra, se está em elevar-se do chão comum para os céus da
lírica ou em baixar a poesia até a lama do prosaico.
III
Não sei se a crônica habita uma
encruzilhada, uma fronteira ou o campo de batalha entre jornalismo e
literatura. Porque tudo que tem de jornalismo beira o antijornalístico. Porque
dança bêbada nos limites do campo literário, para além de quaisquer teorizações.
IV
Não sei se faz sentido desvelar na
crônica, para regozijo dos exegetas, quaisquer índices de realidade, ficção, lirismo,
biografia, quando todo o trabalho do texto é baralhar e traduzir, fraudar e
instruir, entregar e iludir, cumular e subtrair – enfim, fazer cifra (em todos
os sentidos verbais e substantivos deste vocábulo-enigma) da vida e seus
possíveis.
V
Não sei qual a serventia de ordenar a
crônica em tipos – lírica, humorística, filosófica, biográfica, narrativa, dialógica,
descritiva, histórica, metalinguística etc. –, mas poderia inventar outros
sem-número, dado o pendor que tenho para operações de cunho compilatório e enumerativo.
VI
Não sei se a crônica seria uma espécie
de caçula de uma família que tem a Poesia como primogênita e o Conto como filho
do meio, os três gerados pelo Mito e pela Música. Mesmo porque, a prole deste
casal é bem mais numerosa, sem contar as relações extraconjugais. Talvez a
crônica seja apenas um rebento bastardo.
VII
Não sei se a crônica exige de seus
autores o corpo aventureiro da juventude ou o espírito aguçado da madureza. De
qualquer forma, a crônica brasileira se alimentou tanto das diatribes políticas
e peripécias amorosas do jovem correspondente de guerra Rubem Braga quanto do
senso grave, cismarento e meticuloso do velho Carlos Drummond de Andrade, observador
resguardado no escritório; tanto da pornografia angelical (logo, adolescente)
de Nélson Rodrigues quanto da sua contrapartida metafísica, moral e etária,
Otto Lara Resende.
VIII
Não sei se a crônica, ao falar do local
e do circunstancial, aspira ao universal e ao eterno. Porque a crônica é tão
chã, tão familiar, tão nossa que lhe basta dar conta de uma rua, de um bairro,
de uma cidade, dos acontecimentos e dos personagens que, mal alcançam a
esquina, já se ressentem do clima e do idioma de terra estrangeira. Em verdade,
a crônica é um animal doméstico. Sem pedigree.
IX
Não sei se a crônica deseja ou merece a
leitura demorada e inteira do especialista – óculos de grau na ponta do nariz,
mãos afeitas à escrita de notas marginais. Talvez a crônica espere não mais que
o olhar breve, oblíquo e distraído que se dedica às bulas de remédio e aos
manuais de instrução.
Juiz
de Fora, vésperas do outono, 2015