quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

MURILO MENDES: A CAIAÇÃO DA PERSONAGEM


[Artigo inédito]

Fernando Fiorese

O poeta elabora sua personagem,
nela passa a viver como em casa natal.
E não é a casa natal?

Faz a caiação da personagem,
cobre-a de azul celeste e púrpura de escândalo,
adorna-a de talha de ouro e asas barrocas,
burila-a, murila-a
(alfaiate de Deus talhando para si mesmo),
viaja com ela pelo universo.
(ANDRADE, 2002, p. 809-11.)

Para a comadre Malu Ribeiro

À guisa de introdução

Permita-me o leitor uma breve digressão acerca da gênese deste texto, pois assim não apenas esclareço a sua consanguinidade com as leituras e interpretações de Sérgio MICELI (1996) em Imagens negociadas: retratos da elite brasileira (1920-40) e os limites que a este artigo se impuseram, mas também – e à guisa de hommage – o modo como o afeto e a amizade operam no domínio acadêmico: às vezes por tangência, fazendo dialogar escritas complementares ou adversativas; outras por contaminação, engendrando linhas que, embora sob uma única rubrica, são em verdade resultado de muitas mãos.
O texto que aqui encontra a sua possível versão definitiva teve como incipit a incumbência que, como professor neófito, recebi da Profa. Dra. Maria Lúcia Campanha da Rocha Ribeiro de delinear os traços norteadores da correção de uma das questões da prova específica do exame de seleção 2002 para a área de Teoria da Literatura do então Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora. Sob o número 3, a questão que se propunha aos candidatos era inter-relacionar, com fundamento nas reflexões de Miceli, o quadro Retrato de Murilo (1930), pintado por Alberto da Veiga Guignard, com o poema de Murilo Mendes (1901-1975) intitulado “Confidência”.
Tendo a questão proposta como motor e como âncora teórica a obra de Miceli, as linhas que então rascunhei a título de parâmetro de resposta, algo em torno de lauda e meia, deixaram-se contaminar tanto pelos textos elaborados pelos candidatos quanto pelas iluminações que me ofertou a Profa. Malu Ribeiro no decorrer de toda uma tarde de primavera dedicada à correção das provas, à qual seguiram-se outras muitas conversas, sempre verticais e generosas, acerca da importância dos retratos verbais e pictóricos na reconstituição da personagem engendrada por Murilo Mendes, objeto da pesquisa então por ela coordenada, “Murilo Mendes: retratos e traços da memória”.

Figurações do poeta visionário

A construção da leitura e da interpretação dos retratos como “imagens negociadas” deve considerar a possibilidade de surpreender indícios acerca das expectativas e representações do retratado a seu próprio respeito, tendo em vista a necessidade de projeção e prestígio, os modelos de excelência que deseja imitar, os padrões de gosto que busca internalizar. Trata-se, em suma, de identificar pistas que permitam desvelar as pretensões do retratado quanto ao seu posicionamento na hierarquia de determinada sociedade, histórica e culturalmente localizada.
Considerando o repertório de imagens domésticas e públicas, a fatura do retrato se configura como um empreendimento de legitimação visual, tendo em vista a complexidade da negociação entre retratista e retratado, uma vez que, enquanto o primeiro oferece a matéria expressiva aos cenários, à indumentária, aos adereços, às personae e demais instâncias de representação, o segundo apela por suas expectativas em relação à modelagem de uma imagem pública condizente com os níveis de investimento e consagração, bem como adequada às suas orientações artísticas e político-doutrinárias.
Tais considerações permitem compreender o empenho do jovem poeta Murilo Mendes de fazer-se retratar por Ismael Nery (figura 1), Cândido Portinari (figura 2) e Alberto da Veiga Guignard, dentre outros, no sentido de afirmar a sua presença e imagem na cena artístico-literária do Rio de Janeiro, então capital federal. Ressalte-se que, recém-migrado de Juiz de Fora, Murilo Monteiro Mendes encontra dificuldades para realizar o que Sergio Miceli denomina a “tríplice sustentação” (MICELI, 1996, p. 7) da carreira literária, qual seja, “a colaboração continuada na imprensa da época (jornais e revistas ilustradas, bem entendido), a produção de obras autorais, e a inserção no serviço público em condições de interferir o mínimo possível nas atividades propriamente intelectuais” (MICELI, 1996, p. 9). O registro das colaborações de Murilo Mendes em jornais e revistas (embora não pormenorizado na edição de Poesia completa e prosa) atesta que, apenas após a publicação da obra autoral Poemas em 1930, o autor passou a colaborar com relativa regularidade em revistas e jornais cariocas (Boletim de Ariel, A Ordem, Lanterna Verde, O Jornal).

Figura 1

Figura 2

Durante os anos 1920, Murilo mantém (sob pseudônimo) as colunas “Chronica mundana” e “Bilhetes do Rio” no jornal A Tarde, de Juiz de Fora, e publica poemas nas principais revistas do Modernismo (Revista de Antropofagia, Verde, Revista Nova), mas apenas no princípio da década seguinte parece abrir espaço junto às publicações cariocas (com prevalência de artigos sobre literatura e, sintomaticamente, pintura), bem como publicar, mesmo que às custas do pai e sob o selo da editora juizforana Dias Cardoso, a sua produção lírica, alcançando visibilidade perante seus contemporâneos, como atestam as resenhas publicadas à época por João Ribeiro e Pedro Dantas e o prêmio da Fundação Graça Aranha concedido ao referido Poemas (1930). No entanto, apesar das tentativas da família, a sua inserção no serviço público não se realiza nunca em definitivo nem conforme as necessidades de sustentação da carreira literária. E o poeta vive sem atividade regular ou emprego estável, o que decerto exigirá dele empenho redobrado no sentido de fixar uma imagem pública, pois necessário compensar o seu modo maladroit para qualquer tipo de ocupação.
Parece-me significativo que, por ocasião da publicação de Poemas, Murilo seja retratado duas vezes por Guignard. No primeiro quadro (figura 3), datado de 1930, o cenário opera a inserção do poeta migrado na cena-símbolo da capital federal. Talvez retratando Murilo Mendes no quarto modesto da pensão onde residia na Praia de Botafogo, Guignard ocupa quase todo o fundo superior da tela com a Baía de Guanabara (incluindo os morros do Pão de Açúcar e da Urca), num processo de substituição e ampliação do locus em que se insere o poeta. Tal procedimento permite inferir a realização no domínio imagético da expectativa de inclusão definitiva de Murilo Mendes no cenário artístico-literário carioca, sendo que as cortinas que ladeiam a janela e a posição central do próprio retratado são sintomas desta entrée do poeta no palco da capital federal. Embora com apenas 29 anos à época, o manejo por Guignard dos traços fisionômicos de Murilo Mendes, particularmente no que se refere ao caimento dos ombros, à redução do volume do cabelo e ao alongamento da fronte e do pescoço, conferem à sua imagem um aspecto respeitável e senhoril. Os olhos baços e delineados de modo tênue, como que ausentes ou em devaneio, talvez prenunciem o futuro epíteto de “poeta visionário”, enquanto os lábios carnudos traem a musa erótica que Murilo ainda não desvelara por completo no livro inaugural. Já a indumentária, mesmo simples e algo despojada – paletó preto sobre camisa branca, com o adereço da gravata –, ao contrário de denunciar as dificuldades materiais do retratado neste período, indiciam a sua ousadia tipicamente moderna ­– através da gravata ocre –, aliando-se à elegância do precoce senhor de meia-idade um despojamento algo franciscano, ao modo mesmo de um devoto do santo que ele denominará um “arrabbiato fuorilegge”.
No quadro realizado em 1931 (figura 4), Guignard também retrata o poeta no interior de um quarto, desta feita ladeado ao fundo por um quadro de Ismael Nery na parede e por uma janela que emoldura uma paisagem rural. De acordo com Miceli, pode-se

enxergar nesse retrato uma intenção narrativa de equacionar a figura de Murilo entre um ‘antes’ das raízes interioranas, representado pela paisagem com casinha e vegetação à esquerda, e um ‘depois’ sinalizado pelo quadro assinado com as iniciais cruzadas I/N (Ismael Nery), em que se destaca um arlequim (MICELI, 1996, p. 70).

       Neste sentido, em contraposição ao primeiro retrato, a indumentária algo casual e “futurista” – suéter de listras pretas e vermelhas, gravata multicolorida e quase afrouxada sobre a camisa branca de peito plissado –, os cabelos mais fartos, o rosto e o pescoço menos inclinados e alongados, os olhos mais abertos e bem delineados emprestam ao poeta uma figuração um tanto jovem e moderna, simbolicamente de costas para a paisagem interiorana e na companhia de uma das obras daquele que denominou “Ismael Primus Interpares Pinxit”. De um retrato a outro, mantém-se a aparência compenetrada, ensimesmada e respeitável, bem como os lábios carnudos e uma certa ousadia nas vestimentas.

Figura 3

Figura 4

A busca no/do retrato

Considerando o que acima ficou escrito, o poema “Confidência”, publicado no volume As metamorfoses (1944) e transcrito a seguir, enseja também considerações acerca da modelagem da figura do poeta, desta feita a partir do seu próprio discurso poético.

Digo-te que me busco em todos os retratos,
Na água de muitos rios
E não me reconheço.

Digo-te que invento o livro de imagens
Para ressuscitar a infância
– Não a verdadeira, mas a que sonhei.

Digo-te que procuro um ponto sobre a terra
Onde o homem possa respirar.

Digo-te que abracei a estátua do Ente dos entes
E que meus braços foram em peregrinação ao desconforto.
(MENDES, 1995, p. 366)

Abundam na obra muriliana exemplos análogos (embora nem sempre tão eloquentes) ao daquela “postura simbiótica” (MICELI, 1996, p. 70) referida por Miceli quando da abordagem do quase decalque entre as imagens do poeta visionário e do pintor Ismael Nery (figura 5). Nas inúmeras hommages a escritores, artistas plásticos, compositores, poetas, pensadores e personagens da religião cristã, do círculo familiar e anônimos, o poeta procura o símil no repertório de atributos, poderes e máscaras do outro, para assim engendrar a sua própria imagem pública. Em Murilo, a escrita do outro será sempre uma forma enviesada de também realizar a escrita do eu. De tal forma que o poeta pode afirmar “Digo-te que me busco em todos os retratos”, embora, sob o signo da metamorfose heraclítica – “Na água de muitos rios” –, não seja possível reconhecer-se. Resta, então, ressuscitar a infância sonhada, inventando um livro de imagens condizentes com suas ideias, sonhos e projetos, engendrando a origem e o lugar sem desconforto para, talvez ali, desvelar a figuração primeva, anterior à queda, à orfandade biográfica e bíblica. Para talvez ali abraçar e fundir-se à “estátua do Ente dos entes”, símbolo da eternidade materializada no tempo, interrompendo a peregrinação infinda em busca da própria imagem.

Figura 5

Num bricolage de que participam rostos reais e máscaras inventadas, fatos biográficos e fabulações do sujeito, pessoas e personagens, paisagens e cenários, Murilo Mendes experimenta e apura as suas múltiplas figurações nos retratos dos pintores que lhe são próximos e contemporâneos. Para aquele que, no poema “Epitaffio” do livro Ipotesi, confessa que “Amò prima di tutto... / [...] / il teatro fuori del teatro” (MENDES, 1995, p. 1507), é esta uma das muitas estratégias na elaboração de suas próprias dramatis personae, do mitologema metamórfico Murilo Mendes. “Personagem de enigma”, tal se nomeia em “Pirâmide” (MENDES, 1995, p. 265), construída tanto por seus feitos estrambóticos e suas autoficções – a ponto de Carlos Drummond de Andrade defini-lo como “Criador manipulador participante / do espetáculo / ele próprio é o espetáculo...” (ANDRADE, 2002, p. 811) – quanto pelas fantasias engendradas pelos amigos, como testemunha Otto Lara Resende no perfil que traça do poeta em O príncipe e o sabiá:

Confesso que, a certa altura, andei inventando alguns casos de Murilo Mendes. Misturava em tinta surrealista um capote negríssimo, uma data (1928, evidentemente) e o próprio Espírito Santo, e eis aí mais um “caso do poeta”. Mas eram apócrifos, evidentemente, e eu jamais pretendi que fossem outra coisa (RESENDE, 1994, p. 18).

Considerações finais

Consoante as complexas negociações entre retratista e retratado, a fatura das figurações pictóricas de Murilo Mendes se configura como um empreendimento de legitimação visual no âmbito do modernismo carioca, na medida em que tanto enseja atestar a pertença do autor àquele circuito intelectual e artístico, quanto modelar uma imagem pública condizente com os níveis de investimento e consagração, bem como adequada ao desvelamento de sua filiação estética e político-doutrinária e das relações que mantém com seus pares. Cenário, indumentária, adereços, persona e demais instâncias de representação presentes nestes retratos testemunham as pretensões e expectativas do retratado no sentido não apenas de materializar a sua posição na hierarquia do cânone em devir, mas também de apresentar as credenciais com que participa dos jogos da política literária. Embora radicado no Rio de Janeiro desde 1917, apenas a partir da sua primeira publicação autoral Murilo Mendes (Poemas, 1930) passa a colaborar com relativa regularidade em revistas e jornais cariocas, decerto também graças à “caiação da personagem” engendrada pelos retratos referidos.

Anos 1920 (?)

Referências bibliográficas

ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.
FURTADO, Fernando Fábio Fiorese. Murilo na cidade: os horizontes portáteis do mito. Blumenau: Edifurb, 2003.
MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro : Nova Aguilar, 1995.
MICELI, Sergio. Imagens negociadas: retratos da elite brasileira (1920-40). São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
RESENDE, Otto Lara. O príncipe e o sabiá e outros perfis. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

3 comentários:

  1. Estejamos sempre atentos para a leitura de suas postagens: enriquecimento certo.

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