terça-feira, 3 de maio de 2016

OSCAR DA GAMA (1870-1900)


UM POETA À PROCURA DA PRÓPRIA RUBRICA
NO COMPLEXO ESTILÍSTICO FINISSECULAR

Publicado originalmente na revista Verbo de Minas: Letras
(Juiz de Fora, CES/JF, v. 5, n. 10, jul./dez. 2006, p. 163-168)

Fernando Fiorese

Devido ao desaparecimento precoce – antes mesmo de completar 30 anos – e à reduzida (para não dizer inexistente) fortuna crítica, consoante a parcimônia da obra lírica publicada em vida, Luares (1892), e a restrita circulação dos títulos post-mortemNoctâmbulos e Flora rubra [1], não foi possível ao poeta, jornalista e comediógrafo juiz-forano Oscar da Gama (1870-1900) revisar os equívocos do primeiro livro de versos ou absorver os indicativos da exegese crítica de seus contemporâneos.
Comemorativa do centenário do volume póstumo Poesias, a presente publicação enseja recolocar em circulação a lírica de Oscar da Gama [2], permitindo-nos flagrar nos versos do jovem poeta os exercícios de procura da própria rubrica, tendo por cena o complexo estitilístico pós-romântico e por contracena o fin-de-siècle do Brasil oitocentista. A priori, acercar-se do cânone parnasiano parece-nos ser o modo privilegiado de Oscar da Gama nesta busca de uma marca poética singular. Trata-se de eleger afinidades, nominar os membros do grupo de pertença, realizar as hommages que lhe permitam adentrar os pórticos do Parnaso nacional. Proliferam, assim, os versos dedicados a poetas, intelectuais e escritores juiz-foranos (Lindolfo Gomes, Belmiro Braga, Heitor Guimarães, José Rangel e Estevam de Oliveira, dentre outros) e aos próceres – e mesmo muitos epígonos – do período realista-naturalista (Valentim Magalhães, Olavo Bilac, Artur Azevedo, B. Lopes, Augusto de Lima, Guimarães Passos, Lúcio Mendonça etc.).
Também as traduções que encerram Flora rubra – “Tu e eu” (“Tu e yo”) [3], do escritor, político e historiador Víctor Balaguer (1824-1901), uma das principais figuras da Renaixença catalã, e “Pai” (“Le père”), de François Coppée (1842-1908), poeta francês partícipe do Parnasse Contemporain – e a assinatura do principal parnasiano mineiro, Augusto de Lima (1859-1934), no prefácio de Luares, são indícios do empenho de Oscar da Gama em filiar-se à religião da arte do Parnaso. No entanto, desde os títulos dos livros aqui reunidos até algumas das constantes estilísticas e temáticas que caracterizam a poética oscariana, parece-nos que o autor juiz-forano, sem descurar do precedente Romantismo, oscila entre os múltiplos estilos do segundo Oitocentos, num regime de indecidibilidade e tensão que estende o seu arco do Realismo ao Simbolismo.


Do Romantismo, a principiar pelo acolhimento do elemento noite nos títulos Luares e Noctâmbulos, Oscar da Gama reverbera tanto o poema de “comício” – “Página ao Marechal”, “Versos (Recitados por uma atriz na festa da Auxiliadora Portuguesa)”, “A Silva Jardim”, “Ao Brasil!” (datado do primeiro 15 de novembro republicano), “Pesadelo” – quanto a prevalência da oscilação entre a redondilha maior, metro breve de cadência popular, e o nobre decassílabo. Em Flora rubra ressoam Les fleurs du mal baudelaireanas, indício de um Simbolismo postiço que, ao longo dos três livros aqui reunidos, reafirma-se na abundância de reticências e numa semântica da insinuação, ainda que contaminada pela eloquência dos parnasianos. Tais traços estilísticos, mesmo que em parte, antagonizam com a predileção pelas descrições objetivas, nítidas e estáticas dos cultores do “helênico poema de mármore”, para usar palavras do próprio Oscar da Gama.
Também ao mesmo Simbolismo deve-se tributar um certo pendor “decadentista”, que nos faz antecipar o pessimismo cientificista de Augusto dos Anjos (1884-1914), como exemplificam os versos de “Renúncia satânica” (“Ah! Que, de sob a máscara traiçoeira / Da face, surja enfim esta caveira...”), “Diálogo sinistro” (“– Podridão, de que flor és tu a essência horrível? / De que planta vens tu? Da eufórbia? Do estramônio? / E esse que te prepara, alquimista invisível, / Fantástico, espectral... quem é ele? O Demônio?”), “Versos a um louco” (Que tufão infernal perdeu-te o norte, / Que mal enorme e fundo te invalida, / Alma, que te partiste antes da morte, / Cérebro, que te apodreceste em vida!”) ou “Num cemitério”:

Aqui onde me vedes, aqui onde
Lá do mundo não chega a dor fingida...
E da boca, até mesmo a mais sentida,
Nenhum eco, nenhum à voz responde;

Aqui, aqui, sob a chorosa fronde
Da triste casuarina, aos céus erguida,
Oculto e escondo cauteloso a vida,
Como um avaro que um tesouro esconde.

Não vejais nisto tresloucado intento...
A humana voz é, como a das serpentes,
Vipérea, cheia de baldões e insultos!

Odeio-a... e ouvir, quero antes a do vento,
Assobiando aqui por entre os dentes
Escamados dos crânios insepultos.

Da mesma forma, o traço simbolista exsurge na alternância temática entre o amor idealizado – “Quem és tu, musa blasfema, / Para a epopéia suprema / Do Amor – o Zeus do Universo?” (“Excelsior”) – e o amor carnal, com o significativo predomínio deste último não apenas a reiterar a prevalente filiação parnasiana do autor, mas rubricando uma das principais características de sua obra, da qual destacamos os quartetos de “Erótica”:

O filtro embriagante e doce
Do teu lábio rubro eterno
É como se um néctar fosse
Ou se fosse algum falerno.

Sorvo-o enfebrecido e ardente,
Convulso, louco, sem pejos,
Na tua boca fremente,
Na taça rubra dos beijos.

Nas pontas eretas, túmidas,
Desses seios bem iguais
A duas pérolas úmidas,
Duas pérolas colossais!

E depois... num profundo hausto,
Osculando-te a garganta,
Eu caio, bêbedo, exausto,
De tanta volúpia, tanta!

O próprio Oscar da Gama, no poema “Sons e cores”, nos desvela a tensão ou indecisão que em sua obra figura entre os metros “esculturais” da estética plástica do Parnaso e o anelo de musicalidade que, a partir da divisa de Paul Verlaine (1844-1896) na sua Art poétique – “De la musique avant toute chose” –, tornou-se um postulado simbolista:

Dizem que a cor nos desperta
A vaga impressão incerta
Da música a mais sonora...
E, também, que os sons as cores
Lembram, embora incolores
E invisíveis, muito embora.

Duvidei; mas hoje o creio
Por Deus, por ti, por teu seio
Feito de neve e de olores;
Pois, esses teus olhos negros
São como doces alegros
Na doce escala das cores...

Aos traços temáticos e estilísticos até aqui assinalados, poderíamos acrescentar outros que, participando do cânone parnasiano, são na poesia de Oscar da Gama sintomas do empenho falho (?) do poeta no sentido de inscrever a sua rubrica na cena literária brasileira do segundo Oitocentos: “Novo condor, pela História / Traçando um áureo caminho, / Irei fazer o meu ninho / Lá nos píncaros da Glória!” (“Homo”). Grafado em pedra no monumento que a municipalidade fez erguer em homenagem ao autor de Luares no Parque Halfeld (centro de Juiz de Fora), tal quarteto diz-nos pouco desta poética que, muitas vezes ultrapassando os limites epocais e os horizontes da província, nos enseja inferir dos seus possíveis desdobramentos, precocemente interruptos, algo análogo aos versos primeiros de Manuel Bandeira (1886-1968). Neste sentido, para citar um único exemplo, “Os noivos” nos surpreende pela singeleza da forma e pelo lirismo coloquial:

Palavras de namorados,
Itinerário imprescrito
– Rumo talvez do Infinito,
Vão os dois, os braços dados.

Vão por escusas veredas
Alcatifadas de alfombras,
Fugindo ao luar; as sombras
Buscando das alamedas.

Não buscam jardins nem prados,
Trechos azuis do infinito...
– Todo lugar é bonito
Aos olhos dos namorados.

Mapear ressonâncias, inferir desdobramentos, enumerar constantes estilísticas e temáticas, sublinhar a dinâmica das tensões ou dizer dos limites horizontais do autor são estratégias que encontram o seu termo no ponto final que este prefácio já está por merecer. Tudo o que aqui ficou dito não deve servir de antolhos para a leitura da obra, na qual quaisquer referências a estilos de época e períodos literários são de todo prescindíveis. Ainda que seja no delírio do étimo, o cânone articula-se no bélico para destruir o prazer do texto, o espanto originário da leitura. “Tu le connais, lecteur, ce monstre délicat” – trata-se da obra na expectação de suas operações.

Notas

[1] Dois anos após a morte de Oscar da Gama, fez-se publicar em Juiz de Fora o volume Poesias (1902), reunindo os títulos inéditos Flora rubra e Noctâmbulos e a segunda edição de Luares, bem como as prosas de Folhas soltas.

[2] A convite da Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage (FUNALFA) da Prefeitura de Juiz de Fora, escrevemos o presente texto no inverno de 2002 para figurar como prefácio à reedição fac-similar de Poesias, de Oscar da Gama. No entanto, circunstâncias jamais explicadas determinaram que o poeta juiz-forano continue sem merecer a reedição de sua obra.